domingo, 1 de fevereiro de 2009


O Analista e a Esfinge
É um erro acreditar que a ciência consiste apenas em proposições definitivamente provadas, e é injusto exigir que assim seja. Tal exigência é feita somente por aqueles que anelam mais que tudo pela Autoridade, e precisam substituir seu catecismo religioso por outro, ainda que de caráter científico”. Freud, S. “Conferências Introdutórias – III”

Quando o TRIEP me propôs que preparasse um texto para o seu blog, fiquei tomada por grande entusiasmo. Afinal, preparar um texto é sempre um “pretexto” para rever leituras, remexer antigos apontamentos, tentar entender o por quê ter sublinhado determinado parágrafo de um livro, quando o seguinte parece tão mais esclarecedor agora. . . Enfim, é uma boa oportunidade para se debruçar sobre o que se avaliava como já “sabido” e para se repensar sobre o quanto ainda não se “sabe”.
Já fazia algum tempo que não me debruçava para escrever algo mais formal e sistemático. Mas ocorre que no que diz respeito à Psicanálise, a questão não é começar a discorrer sobre a teoria apenas, pois envolve algo mais, algo que tem a ver com a sua prática.Digo “prática”, não apenas com a ideia de praticar a Psicanálise, mas a “prática” que envolve o ser analista: o analista - analista, o analista - analisando, o analista - supervisor, o analista - supervisionando, o que transmite, o que recebe ... Enfim, o campo específico da prática e da teoria psicanalítica.A melhor maneira então de iniciar um estudo da Psicanálise será voltar-se para sua origem histórica, voltar-se à época dos primórdios. E será justamente aí, onde poderemos acompanhar Freud, o criador da Psicanálise, em seu isolamento, explorando, questionando, duvidando e explorando novamente. Neste momento, era o amigo Fliess[1] quem se oferecia como único ouvinte, com quem ousou questionar as verdades da época; a quem expôs sua própria vida – analisando sonhos, atos falhos, lembranças – no trabalho de construção da teoria que se entrelaçava com sua auto-análise.Em busca pela verdade humana, na qual obviamente se incluía, Freud nos leva a participar constantemente de suas dúvidas, incertezas, abandonos e retomadas.
“A verdade”, escreveu Freud a Sandor Ferenczi
[2] em 1910, “é para mim o objetivo absoluto da ciência”.A verdade a qual persegue, podemos vê-la em sua maneira de escrever, onde há uma combinação dos processos primários e os processos secundários[3], onde seus aspectos intelectuais e inconscientes tem uma participação complementar.
As ideias são descobertas e pensadas à medida que as escreve, o que dá ao texto um tom de humildade, propriedade, dignidade e verdade. Ao mesmo tempo em que demonstra sua tolerância em relação ao incerto, suporta a angústia da dúvida e do não saber.
Não se defende das verdades, mas vai a busca delas - o que podemos observar em vários momentos da obra. Porém, o momento crucial onde questiona a teoria na qual vinha apoiando sua clínica e toda sua construção teórica, ocorreu em 1897 com o abandono da teoria da sedução.
É na carta datada de 21 de Setembro de 1897(carta 69), onde Freud fala pela primeira vez sobre a realidade psíquica e escreve: “Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica (teoria das neuroses).”
Em seguida passa a relatar os motivos que o levaram à sua descrença e completa : “...devo reconhecê-las (as dúvidas), como o resultado de um trabalho intelectual honesto e esforçado e devo ter orgulho, depois de ter ido tão fundo, ainda ser capaz de tal crítica. Será que essa dúvida representa apenas um episódio no avanço em direção a novos conhecimentos?”

Quem de nós, neste exato momento estaria livre o suficiente para tal posicionamento? Quem de nós suporta uma questão sem resposta?
Penso que a construção da teoria psicanalítica abriga o paradigma do que veio a ser o próprio ofício da psicanálise. Deparar-se com o novo, o desconhecido, com um enigma que se oferece para ser decifrado. É justamente com o que se deparou Freud na construção de sua obra e é com o que seguimos nos deparando e nos confrontando enquanto analistas.
O analista em sua clínica se depara a cada dia, a cada sessão e a cada minuto com algo do desconhecido. Assim como um arqueólogo que a cada fragmento da cerâmica encontrada, se surpreende com a história que se recria a sua frente. Os fragmentos da história “oculta” do sujeito, surgindo a partir do suporte de um outro, que ocupa o lugar de uma testemunha, transforma seu passado ao ressignificar suas marcas de memória, possibilitando novas perspectivas no seu presente e no seu futuro.
Ao introduzir o conceito de Inconsciente, Freud coloca a fala em outro lugar: “alguém que fala e ao fazê-lo diz mais do que aquilo que se propunha” (Alonso, S. 1988)
[4].Por isso, o que a Psicanálise traz de precioso para qualquer situação é seu dispositivo de “escuta”, a eficácia mágica do “deixar falar” os conteúdos latentes que surgem, os não ditos, as recorrências e repetições, as redes e interligações de novas falas que este dispositivo de escuta permite. E é em um trabalho de investigação psicanalítica que o analista exerce a suspeita de que há sempre um a mais do que o dito para ser escutado.Porém, quem se dispõe a escutar se depara com o inesperado; o inesperado que “pula” para dentro da sessão apoiando-se em aspectos da realidade para fazer-se presente e encontrar algum sentido. E é na forma surpreendente com a qual surge, que podemos presenciar o fenômeno da transferência. O analisando se dirige ao analista como o único e verdadeiro destinatário de sua palavra que traz seus desejos e fantasias. O analista mantém a transferência e é neste cenário que o trabalho analítico se passa.Contudo, como o analista poderá manter a transferência sem se confundir com ela?Sustentar o lugar de analista implica dificuldades. Implica em abdicar a todo momento o lugar de saber que lhe é oferecido. Esse processo poderá ser árduo para o analista, pois, depende de sua análise pessoal e do quanto é possível ao psicanalista realizar a renúncia narcísica para não correr o risco de ocupar o lugar de amo do desejo - convertendo a análise em sugestão; e tampouco se oferecer como ideal a ser imitado - convertendo a análise em pedagogia.
Vemos então, que o conhecimento da teoria nunca será o suficiente para tornar alguém apto para o ofício da psicanálise. Há que se reconhecer que “o analista interpreta sempre em função de uma tripla determinação: do que consegue escutar do que é falado pelo paciente (via atenção flutuante), do que incorporou do sistema conceitual (conhecimento teórico) . . e por último, . . . pelo conhecimento, sempre relativo, que o analista tem de seus próprios processos inconscientes.” (Hornstein, L., 1989)[5].
Se nos remetermos à tragédia do Édipo Rei, veremos que além da identificação no plano universal, que todos temos com Édipo, há outra situação que vive o herói da tragédia, à qual podemos nos livrar.
Refiro-me aqui a arrogância com que Édipo, após ter decifrado o enigma imposto pela Esfinge e entrar na cidade proibida, imaginou-se acima dos mortais e tornou-se surdo para o que não queria ouvir. Afinal era ele quem possuía o saber, aquele que pôde decifrar o enigma e com isso calar a Esfinge. Um saber que o tornou rei, mas que também o levou ao incesto, ao desespero e à cegueira.

O analista deve usar o que conhece da teoria em prol de um fazer falar e não de um fazer calar. Há que se pensar, que o que se sabe jamais será suficiente para aplacar todas as dúvidas e todas as faltas.
Como analistas temos que ressuscitar a cada dia a Esfinge, para que os enigmas sigam presentes, pedindo para serem decifrados.

Jundiaí, Fevereiro de 2009.
Edilaine Bronzeri Pugliese
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FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise, in Obras Completas, RJ, Imago Editora, 1969, vol XII.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente, RJ, Jorge Zahar Editor, 1984.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana – 2, RJ, Jorge Zahar Editor, 1991.
MEZAN, Renato. A vingança da Esfinge: Ensaios de Psicanálise, SP, Brasiliense, 1995.
HORNSTEIN, Luis. Introdução à Psicanálise. SP, Ed. Escuta, 1989.
ALONSO, Silvia. A escuta psicanalítica. Revista Percurso, nº 1, 1988.
ALONSO, Silvia. Efeitos na clínica dos ideais instituídos. Revista Percurso, nº 3, 1989.
KON ROSENFELD, Helena. O estilo do escritor Sigmund Freud: um passeio por Totem e Tabu. Revista Percurso nº 4, 1990.
MASSON, Jeffrey Moussaieff. Carta à Fliess de 21/09/1897 (carta 69), in: A correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess 1887 – 1904, RJ, Imago Editora, 1986.
[1] Wilhelm Fliess (18581928) médico alemão, especializado em cirurgia e otorrinolaringologia.[2] Sandor Ferenczi (1873-1933), médico psiquiatra, psicanalista húngaro.[3] Processo primário, Processo secundário – dois modos de funcionamento do aparelho psíquico. Pode-se diferencia-los através do modo de escoamento da energia psíquica.[4] Silvia Leonor Alonso – psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae SP[5] Luis Hornstein – psicanalista membro do “Foro Psicanalítico de Buenos Aires”.