17 de dezembro de 2013
Rubens M. Volich**
Como esclarece o psicanalista
Rubens M. Volich, somos seres ambivalentes. Queremos que o ano acabe logo para
podermos usufruir dos amplos horizontes de um calendário novinho em folha, mas
tentamos até o último minuto de dezembro fazer acertos de contas com as
promessas que não realizamos na jornada que chega ao fim.
Ao nascer, o ser humano é inserido numa
temporalidade, numa filiação e numa história. Vivemos a experiência do antes e
do depois, do passado e do futuro e também, claro, do presente. Os bebês e as
crianças pequenas não experimentam essas categorias como nós, adultos. O tempo
se organiza aos poucos ao longo do desenvolvimento humano, a partir das
primeiras experiências das crianças com seu corpo, suas necessidades, seus
ritmos biológicos como, por exemplo, o sono, a fome, a sede. Na oscilação entre
a tensão de uma necessidade, como a fome, e o relaxamento vivido quando ela é
saciada constituem-se, para a criança, os ritmos e a experiência do tempo. As
oscilações entre a necessidade e a satisfação, entre o desprazer e o prazer
instauram a temporalidade do humano.
É
importante também lembrar que, ao longo de toda a vida, uma parte de nós, o
inconsciente, persiste em não reconhecer a ordenação temporal. Como revelou
Freud, e como nos mostram diariamente nossos sonhos, o inconsciente é o “lugar”
onde tudo é possível. Nele coexistem, sem nenhuma contradição, o passado e
presente, o antes e o depois, o aqui e o acolá, as cenas da infância e as
fantasias sobre o futuro.
Para
entendermos nossa relação com o tempo, é também preciso perceber que o humano é
um ser em movimento permanente entre o desejo e a realidade; a potência e a
impotência; a culpa e a promessa. Oscilamos entre a esperança de satisfação de
nossos desejos e a frustração por sua insatisfação, entre momentos de prazer e
de desprazer.
Apesar
de aprendermos, a duras penas, a lidar com a realidade da não satisfação e do
desprazer, o inconsciente e as fantasias ligadas a nossas experiências infantis
incitam-nos a acreditar na possibilidade de satisfações e prazeres ilimitados.
Guardamos para sempre as marcas desses funcionamentos, criando, ao longo da
vida, estratégias para lidar com a realidade e com as experiências que
desmentem a onipotência de nossos desejos. Projetamos sobre uma outra pessoa a
responsabilidade pela frustração de um desejo, deslocamos para um outro objeto
a esperança de satisfação desse desejo frustrado, negamos a dor dessa
frustração.
A
temporalidade é o pano de fundo desses movimentos do desejo. O passado é o
tempo da verdade, da realidade implacável do que já aconteceu e não pode mais
ser modificado. É o tempo que nos confronta com o sofrimento dos desejos
insatisfeitos e com o prazer das satisfações já alcançadas. Podemos negar
aqueles sofrimentos e corremos o risco de nos tornarmos prisioneiros das
satisfações já obtidas. O futuro é o tempo em que tudo ainda é possível. É o
tempo das promessas, propício para que acreditemos que todos os nossos desejos
ainda têm chances de se realizarem. As frustrações do passado ou do presente
podem nos convidar a negar ou esquecer esses tempos. O futuro se oferece com
suas novas possibilidades para tentarmos satisfazer o que não foi possível
anteriormente.
Ao
aproximar-se o final de um ano, queremos que ele acabe logo para esquecermos
nossas dores e frustrações e podermos acreditar que no próximo seremos mais
felizes e satisfeitos. O futuro é o tempo propício para a projeção da
onipotência infantil, do pensamento mágico e da ilusão – no bom sentido da
palavra, pois, como nos revelou D. W. Winnicott, precisamos sonhar, inclusive,
para acreditarmos em nós mesmos, nos outros e no mundo que nos rodeia, e
continuar vivendo.
A
passagem de ano marca um momento, aleatório, que se presta de forma
particularmente fértil a esse pensamento mágico, infantil, inconsciente. No
Réveillon, podemos acreditar ter deixado para trás, no Ano Velho, nossas
decepções, nossas perdas e nossa tristeza, projetando, no Novo Ano, todas as
esperanças e desejos que acreditamos, magicamente, serão “certamente”
satisfeitos.
Porém,
por mais que oscilemos entre essas duas possibilidades – querer que tudo acabe
logo esperando a oportunidade de um novo início –, precisamos também negociar
com nossas culpas: “Será que conseguirei suportar o fato de que o ano vai
acabar e não fiz várias coisas que pretendia? Não vi todos meus amigos, não terminei
o trabalho planejado, não encontrei um novo amor…”. Diante do tempo que se
esvai ao final de cada ano, surge então a urgência de resolver todas essas
pendências em dezembro.
Somos
seres ambivalentes. Ao mesmo tempo em que queremos que tudo acabe logo para
termos a chance de um novo início, queremos também ganhar um tempo que não
existe para tentarmos até o último minuto do ano realizar o impossível. Sempre
buscando alcançar tudo o que desejamos, negociamos com nós mesmos. Olhamos para
a lista de promessas de 2013, tentamos nos dar uma última chance, mas guardamos
uma carta, na manga: “Se não der certo, passarei para a lista de 2014… que,
aliás, com certeza, será muito melhor, com mais felicidade, amor, saúde,
dinheiro…”.
“Humano,
demasiadamente humano”, como diria Nietzsche. Nessas vivências, dentro de
certos limites, nada há de doentio. Como o fizemos desde nossas primeiras
experiências infantis com a realidade do mundo, vivemos e alimentamos as
ilusões e as fantasias necessárias para que acreditemos que podemos superar
nossas dores e que a esperança nos dê motivo para que continuemos vivos, em
busca da satisfação de nossos desejos.
Porém,
são essas experiências necessárias à vida, a ilusão e a esperança que nos
tornam presas fáceis do marketing e do consumo. Nessa dimensão mágica,
infantil, onipotente, tornamo-nos facilmente vulneráveis aos apelos e
publicidades que, mais do que prometer, tentam nos garantir que, nas festas de
final de ano, nossos desejos efetivamente serão satisfeitos, que encontraremos
ao pé da árvore o presente pelo qual ansiamos; que sem dúvida o próximo ano
será muito melhor, que conquistaremos tudo aquilo que não alcançamos no ano que
se encerra…
É
através dessa brecha, da “ilusão necessária” para o viver, que se infiltram a
tirania do consumo e dos ideais que nos escravizam – não só no Natal e Ano
Novo, mas especialmente nessas datas.
Quando
isso ocorre, o jogo vira: o que era facultativo – a ilusão, o devaneio, o sonho
– passa a ser compulsório. Nas festas, somos obrigados a ser felizes; nas
ceias, temos de comer e beber bem além de nossa necessidade e prazer; temos a
obrigação de comemorar, ser alegres, esperançosos, apagando as frustrações do
passado.
Mas
o compulsório é uma violência contra o humano. O que poderia ser prazer
torna-se imperativo, fonte de exigência, urgência, pressão. Assim,
“enlouquecemos”, nos “estressamos” e nos maltratamos nos finais de ano. Não
temos mais escolha.
O
que poderia ser uma experiência de recolhimento, de reflexão, um momento para
sintonizarmos com outras dimensões, espirituais e afetivas, pessoais,
familiares e sociais desse período do ano torna-se inviável diante das
exigências das celebrações coletivas.
O
que poderia ser uma pausa, para elaborarmos nossos feitos e decepções, nossas
conquistas e perdas, para sonharmos com o que realmente desejamos no porvir,
torna-se impróprio e mesmo inconveniente.
O que já foi e poderia novamente ser
um jogo delicioso, de liberdade de escolha e de crescimento, transforma-se em
verdadeira servidão.
*artigo publicado na Revista Brasileiros
**Psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot. Professor do Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise; Hipocondria: impasse da alma, desafios do corpo; Segredos de mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista; coorganizador e autor dos livros da série Psicossoma.