quarta-feira, 18 de dezembro de 2013


Tempos difíceis*
17 de dezembro de 2013
Rubens M. Volich**

Como esclarece o psicanalista Rubens M. Volich, somos seres ambivalentes. Queremos que o ano acabe logo para podermos usufruir dos amplos horizontes de um calendário novinho em folha, mas tentamos até o último minuto de dezembro fazer acertos de contas com as promessas que não realizamos na jornada que chega ao fim.  
            Ao nascer, o ser humano é inserido numa temporalidade, numa filiação e numa história. Vivemos a experiência do antes e do depois, do passado e do futuro e também, claro, do presente. Os bebês e as crianças pequenas não experimentam essas categorias como nós, adultos. O tempo se organiza aos poucos ao longo do desenvolvimento humano, a partir das primeiras experiências das crianças com seu corpo, suas necessidades, seus ritmos biológicos como, por exemplo, o sono, a fome, a sede. Na oscilação entre a tensão de uma necessidade, como a fome, e o relaxamento vivido quando ela é saciada constituem-se, para a criança, os ritmos e a experiência do tempo. As oscilações entre a necessidade e a satisfação, entre o desprazer e o prazer instauram a temporalidade do humano.
            É importante também lembrar que, ao longo de toda a vida, uma parte de nós, o inconsciente, persiste em não reconhecer a ordenação temporal. Como revelou Freud, e como nos mostram diariamente nossos sonhos, o inconsciente é o “lugar” onde tudo é possível. Nele coexistem, sem nenhuma contradição, o passado e presente, o antes e o depois, o aqui e o acolá, as cenas da infância e as fantasias sobre o futuro.
            Para entendermos nossa relação com o tempo, é também preciso perceber que o humano é um ser em movimento permanente entre o desejo e a realidade; a potência e a impotência; a culpa e a promessa. Oscilamos entre a esperança de satisfação de nossos desejos e a frustração por sua insatisfação, entre momentos de prazer e de desprazer.
            Apesar de aprendermos, a duras penas, a lidar com a realidade da não satisfação e do desprazer, o inconsciente e as fantasias ligadas a nossas experiências infantis incitam-nos a acreditar na possibilidade de satisfações e prazeres ilimitados. Guardamos para sempre as marcas desses funcionamentos, criando, ao longo da vida, estratégias para lidar com a realidade e com as experiências que desmentem a onipotência de nossos desejos. Projetamos sobre uma outra pessoa a responsabilidade pela frustração de um desejo, deslocamos para um outro objeto a esperança de satisfação desse desejo frustrado, negamos a dor dessa frustração.
            A temporalidade é o pano de fundo desses movimentos do desejo. O passado é o tempo da verdade, da realidade implacável do que já aconteceu e não pode mais ser modificado. É o tempo que nos confronta com o sofrimento dos desejos insatisfeitos e com o prazer das satisfações já alcançadas. Podemos negar aqueles sofrimentos e corremos o risco de nos tornarmos prisioneiros das satisfações já obtidas. O futuro é o tempo em que tudo ainda é possível. É o tempo das promessas, propício para que acreditemos que todos os nossos desejos ainda têm chances de se realizarem. As frustrações do passado ou do presente podem nos convidar a negar ou esquecer esses tempos. O futuro se oferece com suas novas possibilidades para tentarmos satisfazer o que não foi possível anteriormente.
            Ao aproximar-se o final de um ano, queremos que ele acabe logo para esquecermos nossas dores e frustrações e podermos acreditar que no próximo seremos mais felizes e satisfeitos. O futuro é o tempo propício para a projeção da onipotência infantil, do pensamento mágico e da ilusão – no bom sentido da palavra, pois, como nos revelou D. W. Winnicott, precisamos sonhar, inclusive, para acreditarmos em nós mesmos, nos outros e no mundo que nos rodeia, e continuar vivendo.
            A passagem de ano marca um momento, aleatório, que se presta de forma particularmente fértil a esse pensamento mágico, infantil, inconsciente. No Réveillon, podemos acreditar ter deixado para trás, no Ano Velho, nossas decepções, nossas perdas e nossa tristeza, projetando, no Novo Ano, todas as esperanças e desejos que acreditamos, magicamente, serão “certamente” satisfeitos.
            Porém, por mais que oscilemos entre essas duas possibilidades – querer que tudo acabe logo esperando a oportunidade de um novo início –, precisamos também negociar com nossas culpas: “Será que conseguirei suportar o fato de que o ano vai acabar e não fiz várias coisas que pretendia? Não vi todos meus amigos, não terminei o trabalho planejado, não encontrei um novo amor…”. Diante do tempo que se esvai ao final de cada ano, surge então a urgência de resolver todas essas pendências em dezembro.
            Somos seres ambivalentes. Ao mesmo tempo em que queremos que tudo acabe logo para termos a chance de um novo início, queremos também ganhar um tempo que não existe para tentarmos até o último minuto do ano realizar o impossível. Sempre buscando alcançar tudo o que desejamos, negociamos com nós mesmos. Olhamos para a lista de promessas de 2013, tentamos nos dar uma última chance, mas guardamos uma carta, na manga: “Se não der certo, passarei para a lista de 2014… que, aliás, com certeza, será muito melhor, com mais felicidade, amor, saúde, dinheiro…”.
            “Humano, demasiadamente humano”, como diria Nietzsche. Nessas vivências, dentro de certos limites, nada há de doentio. Como o fizemos desde nossas primeiras experiências infantis com a realidade do mundo, vivemos e alimentamos as ilusões e as fantasias necessárias para que acreditemos que podemos superar nossas dores e que a esperança nos dê motivo para que continuemos vivos, em busca da satisfação de nossos desejos.
            Porém, são essas experiências necessárias à vida, a ilusão e a esperança que nos tornam presas fáceis do marketing e do consumo. Nessa dimensão mágica, infantil, onipotente, tornamo-nos facilmente vulneráveis aos apelos e publicidades que, mais do que prometer, tentam nos garantir que, nas festas de final de ano, nossos desejos efetivamente serão satisfeitos, que encontraremos ao pé da árvore o presente pelo qual ansiamos; que sem dúvida o próximo ano será muito melhor, que conquistaremos tudo aquilo que não alcançamos no ano que se encerra…
            É através dessa brecha, da “ilusão necessária” para o viver, que se infiltram a tirania do consumo e dos ideais que nos escravizam – não só no Natal e Ano Novo, mas especialmente nessas datas.
            Quando isso ocorre, o jogo vira: o que era facultativo – a ilusão, o devaneio, o sonho – passa a ser compulsório. Nas festas, somos obrigados a ser felizes; nas ceias, temos de comer e beber bem além de nossa necessidade e prazer; temos a obrigação de comemorar, ser alegres, esperançosos, apagando as frustrações do passado.
            Mas o compulsório é uma violência contra o humano. O que poderia ser prazer torna-se imperativo, fonte de exigência, urgência, pressão. Assim, “enlouquecemos”, nos “estressamos” e nos maltratamos nos finais de ano. Não temos mais escolha.
            O que poderia ser uma experiência de recolhimento, de reflexão, um momento para sintonizarmos com outras dimensões, espirituais e afetivas, pessoais, familiares e sociais desse período do ano torna-se inviável diante das exigências das celebrações coletivas.
            O que poderia ser uma pausa, para elaborarmos nossos feitos e decepções, nossas conquistas e perdas, para sonharmos com o que realmente desejamos no porvir, torna-se impróprio e mesmo inconveniente.
            O que já foi e poderia novamente ser um jogo delicioso, de liberdade de escolha e de crescimento, transforma-se em verdadeira servidão.

*artigo publicado na Revista Brasileiros
**Psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot. Professor do Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise; Hipocondria: impasse da alma, desafios do corpo; Segredos de mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista; coorganizador e autor dos livros da série Psicossoma.