sábado, 27 de março de 2010


Sigmund Freud como no original*Trabalhos do criador da psicanálise ganham novas traduções feitas diretamente do alemão

Recentemente colocados sob domínio público, os textos de Sigmund Freud (1856- 1939) já começam a chegar às livrarias em suas novas roupagens, como esta providenciada pela Companhia das Letras. A editora planeja o lançamento da obra completa traduzida diretamente do alemão pelo germanista Paulo César de Souza (a exemplo do que vem fazendo a Imago desde 2004, sob coordenação de Luiz Alberto Hanns). O projeto editorial, organizado em 20 volumes, respeita a sequência cronológica dos textos, mas lança inicialmente os títulos publicados por volta de 1915, ou seja, de um período no qual o pensamento freudiano estava consolidado e em expansão teórica. Assim aparecem agora os volumes 10 (Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranóia Relatado em Autobiografia - O Caso Schreber -, Artigos sobre Técnica e Outros Textos - 1911-1913); 12 (Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos - 1914-16); e 14 (História de Uma Neurose Infantil - O Homem dos Lobos -, Além do Princípio do Prazer e Outros Textos - 1917-20).
Temos aí trabalhos teóricos e técnicos da maior importância e dois dos famosos casos clínicos de Freud, o Caso Schreber e O Homem dos Lobos, que certamente encantarão o leitor curioso. Schreber foi um importante magistrado alemão que escreveu um registro biográfico no qual expõe com riqueza de detalhes (embora a família tenha censurado grande parte do texto) a transformação de seu corpo para ser a mulher de Deus e com ele engendrar uma nova raça de homens. A partir deste livro, Freud retraça as origens e os significados do delírio, mostrando como mesmo as ideias mais loucas e descabidas podem ser compreendidas, desde que remetidas à lógica própria do inconsciente. O mesmo pode ser dito sobre O Homem dos Lobos, jovem russo e rico que perambulava pela Europa atrás de quem o curasse de suas angústias e que, aos 4 anos, tivera um sonho no qual via uma árvore em cujos galhos estavam sentados alguns lobos (razão do apelido com o qual ficou conhecido), o que permitiu a Freud realizar uma controvertida construção.
Concomitantemente às obras de Freud, a editora relança a tese de doutorado do tradutor, As Palavras de Freud - O Vocabulário Freudiano e Suas Versões, defendida na USP, centrada no exame das dificuldades apresentadas na tradução de determinados termos "técnicos" fundamentais dentro da teoria freudiana. São eles Ich (ego), Es (id), Besetzung (catexia), Verdrängung (recalque ou repressão), Vorstellung (representação), Angst (angústia), Nachtraglichkeit (posterioridade), Verneinung (negação), Verwerfung (forclusão), Zwang (obsessão), Trieb (pulsão ou instinto) e Versagung (frustração). Esse foco poderia ter resultado em um texto árido, o que não ocorre, pois, para desenvolver a discussão filológica desses termos, Souza parte das duas grandes traduções paradigmáticas da obra freudiana que o antecederam - a inglesa Standard Edition, de James Strachey, e a Oeuvres Complètes, o projeto francês ainda em curso dirigido por Jean Laplanche - oferecendo um rico panorama de seus contextos históricos e institucionais. Seguimos com interesse o percurso da Standard Edition, durante décadas considerada o padrão-ouro das traduções dos textos freudianos. Seu prestígio diminuiu com o aparecimento das críticas de Bruno Bettelheim, publicadas - certamente não por coincidência - logo após a morte de Anna Freud, defensora de Strachey, fato que mostra a influência dos fatores políticos no trato da obra freudiana. Da mesma forma, tomamos conhecimento das grandes polêmicas que cercam ainda hoje a tradução francesa, vazada, na opinião de alguns, num bizarro "laplanchês". No capítulo sobre estilo e terminologia de Freud, Souza resume as análises estilísticas de Walter Muschg, Walter Schönau, François Roustang, Robert Holt, Patrick Mahony e Uwe Pörksen, dissecando os aspectos formais do texto freudiano, que oscila entre a prosa artística e a prosa científica, usando com desenvoltura tropos e figuras de retórica.
Souza faz uma anotação com a qual qualquer leitor de textos psicanalíticos imediatamente concorda: "Quem observa, ainda que panoramicamente, a produção e o modo de atuar dos meios psicanalíticos estrangeiros, constata um divórcio entre a prosa direta, sem adornos e apegada à referência clínica, própria da psicanálise nos países de expressão inglesa, e a prosa mais refinada e um tanto vaga, cônscia de si mesma e autorreferente, peculiar a boa parte do movimento psicanalítico francês." Nesse aspecto, os autores de língua inglesa, mesmo sem o talento literário de Freud, estão mais próximos de sua didática clareza, que procurou sempre se afastar das esfumaçadas formulações em que tão facilmente se abriga a falsa profundidade.

Sérgio Telles é psicanalista e escritor, autor de Visita Às Casas de Freud e Outras Viagens (Casa do Psicólogo), entre outros.

LançamentoDois eventos marcam o início da publicação destas novas traduções de Freud. No dia 29, começa, no CineSesc, a mostra Mal-Estar na Cultura. E, no dia 30, no Sesc Pinheiros, José Miguel Wisnik faz paralelos entre conceitos freudianos e obras literárias brasileiras, com participação de Caetano Veloso.


Resenha publicada no Jornal O Estado de São Paulo de 27/03/10

sexta-feira, 5 de março de 2010


ADOLESCÊNCIA E VIOLÊNCIA *

*(Artigo publicado na revista E-Sesc – no. 140 - Janeiro 2009)
“Em um mundo que parece cada dia mais violento, pretendemos debater a violência à qual os adolescentes, em especial, estão submetidos. Em que a violência da qual eles são vitimas se diferencia dos adultos? Quais são os riscos de uma adolescência submetida à violência?”
A questão proposta superpõe dois importantes problemas – o da violência e o da adolescência. Comecemos pela violência. Sempre que falamos sobre ela, a primeira coisa que fazemos é vê-la como um problema externo, que não nos diz respeito a não ser como eventuais vítimas inocentes. Jamais admitimos que nós mesmos possamos ser agentes produtores de violência.
Os violentos e agressivos são sempre os outros, nunca nós mesmos. Agimos de modo semelhante com a sexualidade. Estamos muito atentos e fazendo julgamentos sobre os comportamentos sexuais dos outros, como se nós mesmos não passássemos por vicissitudes semelhantes àquelas que tão severamente censuramos nos outros. Negamos e reprimimos nossos impulsos agressivos e sexuais. Até certo ponto isso é necessário.

Como Freud dizia, para vivermos em sociedade, não podemos dar plena vazão a nossos desejos sexuais e agressivos. Temos de controlá-los, caso contrário ficaria impossibilitada a convivência que com o outro. Mas esse controle não deve fazer com que neguemos a presença de tais fortes pulsões em nós mesmos e que as projetemos no outro, atribuindo-lhe com exclusividade aquilo que também possuímos. A projeção dos desejos agressivos e sexuais no outro, e sua concomitante negação em nós mesmos, é fonte de inesgotáveis desentendimentos entre os seres humanos. O ideal é que reconhecêssemos nossa constituição pulsional, que nos dota de sexualidade e agressividade, sendo tarefa de todos e de cada um a administração destas poderosas forças internas.
Assim, quando se fala da violência que atingiria o adolescente, tal afirmação pareceria colocá-lo como vítima indefesa e passiva, deixando de lado que a violência habita também o adolescente, pois ela nos habita a todos. Mas é verdade que os recursos internos para o manejo da violência diferem em função do nível de estruturação do psiquismo, estando ele ainda em processo de organização nas crianças e nos adolescentes. Falemos agora da adolescência. Ela é um período de extraordinária turbulência interna, no qual o corpo e o psiquismo sofrem amplas modificações. O adolescente deve deixar a vida infantil com todos seus valores e se defrontar com grandes desafios, especialmente aqueles ligados a sua personalidade, a sua identidade. O adolescente não é mais o filhinho de papai e mamãe, a quem deve obedecer sem discussão. Ele agora precisa se firmar como sujeito, deve definir sua sexualidade e descobrir a posição que vai ocupar no mundo dos adultos. O adolescente está exposto à violência interna de seus próprios desejos e conflitos, pois tanto sua sexualidade como sua agressividade adquirem aspectos e intensidades por ele até então desconhecidas. Seu complexo de Édipo ressurge com grande intensidade, deixando-o confuso e assustado ao constatar que agora poderia realizar suas velhas fantasias incestuosas inconscientes, coisa que seu corpo infantil impossibilitava. Da mesma forma, sua própria agressividade precisa ser modulada. O adolescente se depara com muitos desafios.

Como lidar com os modelos que a sociedade lhe oferece para seu sexo, sua posição social, seu futuro? Deve se conformar com eles? Precisa se rebelar contra eles? Para impor sua identidade, deverá lutar contra os pais. Mesmo quando estes estão do seu lado e se dispõem a ajudá-lo, ainda assim ele tem de se desprender deles. Ao mesmo tempo em que ele quer fazer isso e seguir seu próprio caminho, teme se afastar dos pais e perder o lugar protegido que eles lhe têm proporcionado. Frente a angústia que tudo isso lhe provoca, o adolescente pode reagir com grande agressividade, voltada para os outros ou contra si mesmo, em condutas auto destrutivas. As questões sobre a identidade sexual ocupam um lugar central para os adolescentes. Os rapazes confundem masculinidade com agressividade e se engajam em estrepitosas exibições machistas. As meninas engravidam como uma forma de provar que são mulheres, apesar de terem as informações objetivas necessárias que as poupariam dos problemas daí decorrentes. Ambos podem ser levados a praticar sexo não seguro, expondo-se a doenças sexualmente transmissíveis ou de gravidezes não planejadas. Aqueles que descobrem ter uma sexualidade diversa da maioria padecem grandes agonias. Ao se afastar do protegido grupo familiar, o adolescente necessita vitalmente se incluir em outros grupos, que o amparem em seus conflitos identitários. Nos novos grupos, deve aprender a lidar com os fortes mecanismos que regem seus funcionamentos, com as lideranças, as disputas de facções rivais que podem uni-los ou fragmentá-los, a eleição de bodes expiatórios, etc. Nestes grupos, a afirmação da masculinidade faz com que os comportamentos agressivos nos rapazes sejam supervalorizados, da mesma forma que o comportamento sedutor por parte das meninas, o que gera situações potencialmente perigosas. Tais são os percalços quase inevitáveis que o adolescente tem de atravessar em sua busca de uma nova identidade. Este tumulto interno deixa os adolescentes especialmente vulneráveis às drogas e ao álcool, que são ingeridos como calmantes, no intuito de aplacar o sofrimento que lhes provoca o crescimento, a perda da identidade infantil, o ter de enfrentar desafios que, naquele instante, podem parecer-lhes imensos e intransponíveis.

Até agora, falei da violência interna própria do momento psíquico da adolescência. Mas, é claro, aspectos sociais e culturais podem acolher e proteger o adolescente neste momento de confusão identitária e violentas descargas sexuais e agressivas, ou deixá-lo entregue a si mesmo, agravando suas dificuldades. De modo geral, para que a adolescência transcorra do melhor modo possível, desembocando numa organização estável da identidade, os pais deveriam ocupar adequadamente suas funções paterna e materna. Teóricos da psicanálise julgam que, nas ultimas décadas, tem havido um progressivo enfraquecimento da figura paterna. Isso se dá por inúmeros fatores – o abandono dos valores ligados ao patriarcado, as conquistas do feminismo, por exemplo - o que tem criado novas dificuldades no já crítico processo da adolescência. Além disso, nos últimos anos a família também tem sofrido grandes alterações. Ao invés do modelo tradicional, a prática difundida do divórcio faz com que as famílias reconstituídas sejam cada vez mais numerosas e isto certamente não ajuda a atenuar os conflitos desencadeados pela adolescência. Num país como o nosso, de profundos abismos socioeconômicos, com grandes parcelas da população segregadas em condições sub-humanas de vida, é claro que o tumulto próprio da adolescência encontra uma retaguarda social e familiar muito precária. Frequentemente lemos nos jornais noticias sobre “chacinas”, a forma consagrada pela imprensa para se referir aos freqüentes assassinatos em massa de adolescentes e jovens moradores de bairros pobres das grandes cidades. Habitualmente tais chacinas são atribuídas a lutas de gangues de traficantes de drogas, acertos de contas, ação de grupos policiais. A indiferença da sociedade frente a estes bárbaros assassinatos fica ainda mais chocante ao se contrastá-la com o alarde que é produzido pela morte de um único adolescente das classes mais abastadas, coisa que raramente ocorre. A adolescência é um período de grande violência interna e essa violência interna pode ser neutralizada ou potencializada pelo meio ambiente, pela familia, pela sociedade. No Terceiro Mundo, a desigualdade social é, em si, uma violência que recai sobre todos nós. Sendo os adolescentes mais frágeis e susceptíveis, não é de admirar que sejam por ela mais atingidos

Sérgio Telles
Psicanalista, psiquiatra e escritor. Membro do Departamento de Psicanálise do Sedes - SP
http://www.sergiotelles.com.br/