segunda-feira, 8 de junho de 2009

"Divã ou Diva - sobre o feminino"


O cinema e a psicanálise têm entre si uma estreita proximidade, seja desde o nascimento de ambos na mesma época ao sentido dado aos sonhos por Freud. Um filme pode se prestar bem para “sonharmos” , como também para buscar, o quê Freud buscou em clássicos da literatura, como Édipo Rei e Hamlet, uma teorização das questões psíquicas universais. O filme “O Divã”, de José Alvarenga, baseado no romance de Martha Medeiros, conta a história de Mercedes, uma mulher de 40 anos, que vive às voltas com as alegrias e desafios da sociedade contemporânea. Casada, mãe de dois filhos, Mercedes decide, sem bem saber o porquê procurar um psicanalista.
Proponho aqui realizar a análise de fragmentos deste longa nacional, privilegiando a escuta do feminino. À parte do tom caricatural, cômico-crítico dado ao psicanalista no filme, efeito estereotipado do senso comum e do propósito comercial destinado a fazer rir, não pretendo esgotar outras tantas possibilidades de leituras psicanalíticas que esse filme poderia disparar. Interessou-me pensar sobre aspectos da constituição psíquica da mulher. Escrevo o quê ecoou à minha escuta frente a uma única sessão de cinema que assisti do filme em questão, assim como fazemos trabalhar o quê nos suscita em uma inédita, por ser sempre única, sessão entre o analista e o analisando.
Mercedes se vê à meia idade frente ao desmoronamento dos antigos acordos conjugais, a traição do marido, a separação, os filhos crescidos e a sua não realização profissional. Ela lança ao analista questões sobre sua capacidade de sedução - “alguém tem desejo por mim?” -, numa busca de que “algo” a faça acreditar, confiar na sua existência como sujeito, e como todos demanda amor. Acompanhamos a escuta do analista, Lopes, e suas intervenções que passam a provocar recordações, onde havia repetições.
A psicanálise se dirige ao sujeito do inconsciente, e assim, assistimos um analista, através da sua escuta, propiciar sua emergência. Percorrendo um caminho no sentido regressivo, do manifesto ao latente, converte a repetição em recordação pelos sentidos novos encontrados. Começa-se a reescrever uma história, que não é outra história, mas potencialmente nova na maneira de entender, experimentar e viver a vida.
Mercedes conta que perdeu a mãe ainda pequena, não chorou sua morte e que a partir daí “algo surpreendente aconteceu: o pai foi tão carinhoso...”. Ao falar ela recorda a cena que se segue: uma menina, aproximadamente no final da primeira infância, caminhando triunfante em torno do caixão num velório e, em seguida a vemos sentada no colo do pai, acolhida carinhosamente.
Proponho a partir dessa cena pensarmos sobre a especificidade do Édipo feminino. Freud formulou o complexo de Édipo, na chamada forma simples e positiva, o desejo da morte do rival que é a pessoa do mesmo sexo e desejo sexual da personagem do sexo oposto
[1]. O esquema inicial proposto por Freud compreenderia, então, a menina que se enamorava do pai e o menino, da mãe; e durante a estruturação deste conflito a função paterna desempenharia a interdição imprescindível, porta voz da castração simbólica. No caso do menino, submetido à ameaça de perder o quê lhe era precioso, renuncia ao lugar psíquico de único e exclusivo objeto amoroso da mãe, identifica-se com o pai e abre-se, assim, a possibilidade da busca de outra mulher. Com a teorização de que a mãe é o primeiro objeto amoroso para todos, sejamos meninos ou meninas, haverá acréscimos teóricos neste complexo, tendo que ser teorizado o que acontecia com a menina. No caso da menina, a relação do complexo de Édipo com o complexo de castração é muito diferente do que no menino. O desejo exacerbado de possuir aquilo do qual a mulher se crê privada pelo destino – ou pela mãe – expressa uma insatisfação fundamental. Nessa fase um só sexo, o masculino, é conhecido pelas crianças, e assim, compreende-se o despeito invejoso da menina por ser dele desprovida. Diante da decepção com a mãe, por ela não ter lhe “feito completa” ou devidamente paramentada, troca de objeto de amoroso, e volta-se para o pai.
Seguimos Mercedes em suas tentativas de obter uma completude, antes buscada no pai, depois na maternidade, agora em casos com moços vigorosos. O Édipo feminino é construído a partir da mudança de objeto libidinal da mãe para o pai, e também se refere à separação da mãe, ou seja, a menina vive com a mãe uma completude imaginária, e a entrada de um terceiro (o pai) anunciará a angústia de castração – não existe a completude – promovendo a separação e possibilitando o processo de subjetivação. Quando adulta, nas escolhas de um par amoroso, ao formar um casal, a mulher pode repetir suas más relações com a mãe, em última instância. Pensemos nas conseqüências psíquicas no caso descrito da mãe que morre enquanto se dá no psiquismo da menina toda essa construção estruturante: o desejo de ter o pai para si e destruir sua rival, terrivelmente, parecem ser realizados. O perigo da interdição simbólica não se cumpriu? Contudo, neste caso, o pai parece ter exercido uma função organizadora.
O filme também faz referência a amizade entre mulheres, a melhor amiga, com quem confidências íntimas e cosméticas são compartilhadas, o olhar para uma outra em busca de saber o quê esta tem, na intenção de responder aos próprios enigmas da falta. Neste sentido, Mercedes observa a suposta bela relação de um casal – a amiga e o marido - que tem uma filha, com a qual parece identificada. Mercedes se irrita com o analista que parece insistir em lhe pontuar: “O quê minha mãe tem a ver com isto?”. Contudo, parece ser após a morte da amiga, falada na análise, que pode revisitar suas lembranças, chorar a morte da mãe, fazer o trabalho de luto: identificar-se e separar-se do objeto perdido, lançando-se à própria subjetividade. Reconciliando-se com suas perdas, com sua própria finitude: “O quê minha mãe tem a ver com isto?... Tudo tem um fim...” retoma.
O feminino que, como possibilidade, passa a se entender além da questão do corpo, da procura em obturar a falta, encontra a última saída descrita por Freud: “tornar-se” mulher. Nas últimas cenas do filme vemos Mercedes protagonista da sua arte numa mostra de suas obras de pintura a óleo encontrando contorno à falta. Pôde fazer escolhas e ser o melhor e o mais feliz que podia ao percorrer o solitário e singular caminho das respostas subjetivas.
Uma Diva... Uma mulher dona das suas peculiaridades pôde sobrevir.

Patrícia Merli Macieira Matalani


[1] J.Laplanche/J.-B.Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, verbete Complexo de Édipo