segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Espírito de Natal*

Um panetone médio custa R$ 6 na padaria da esquina (sem contar que meu padeiro, quando lhe expliquei as razões de minha compra, ofereceu um desconto). Um pequeno brinquedo novo, na sua caixa, custa por volta de R$ 10 (menos, se você se aventurar na rua 25 de Março).
Segundo suas possibilidades, compre de cinco a dez panetones e de cinco a dez brinquedos (para meninas e meninos). Coloque tudo no carro e circule pelas ruas; se puder, leve seus filhos consigo. Quando encontrar crianças pedindo esmola ou vendendo chicletes, ofereça a cada uma um panetone e um brinquedo. Não vale jogar o pacote pela janela e sair correndo: abra o vidro inteiramente e troque umas palavras. Aproxime-se.

Claro, seu gesto não vai mudar o Brasil nem o mundo. Tampouco vai resolver os problemas das crianças que você encontrará. Será que servirá só para acalmar um pouco sua culpa social?
Nada disso. Seu gesto terá um efeito específico, relevante e comprovado -um efeito em você mesmo. Explico.



Em 2001, a revista "Science" (vol. 293, nº 5.537) publicou uma pesquisa de Joshua Greene, Jonathan Cohen e outros, "An FRMI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment" (uma investigação por ressonância magnética funcional do engajamento emocional no juízo moral). Foram propostos dilemas práticos a uma série de sujeitos cujo funcionamento cerebral estava sendo monitorado.
Seja o dilema seguinte: há um trem descontrolado que, se continuar no seu curso, matará inevitavelmente cinco pessoas. Numa cabine de controle do tráfico ferroviário, você pode acionar um interruptor que desviará o trem. Detalhe incômodo: em seu novo percurso, também inevitavelmente, o trem matará uma pessoa. A grande maioria dos sujeitos escolhe o mal menor e aciona o interruptor sem hesitar.
Agora, um dilema apenas diferente. Imagine o mesmo trem descontrolado, mas, desta vez, para evitar a catástrofe que mataria cinco passoas, você deve empurrar sobre os trilhos um ser humano, que você não conhece, mas que está de seu lado. O sacrifício do desconhecido salvará os cinco. A situação é parecida à anterior, mas a maioria dos sujeitos testados se recusa a agir. Os que decidem empurrar o vizinho chegam à sua decisão num tempo muito mais longo do que o tempo necessário aos sujeitos do primeiro teste para acionar o interruptor.
Greene e Cohen constatam que, no segundo teste, a atividade cerebral dos sujeitos envolve uma grande agitação emocional, ausente no caso do primeiro teste. Eles concluem que, quando o cenário comporta uma relação próxima e pessoal, a decisão deixa de ser completamente racional ou funcional.

O fato não é surpreendente. Entende-se que, na maioria dos casos, a proximidade do outro produza um mínimo de empatia afetiva que torna complicado, por exemplo, jogá-lo nas rodas de um trem.
Talvez seja por isso que, para decidir a morte da criança que come um sorvete ao seu lado, o terrorista se transforma em homem-bomba: sua própria morte resolve o conflito interno insolúvel entre ideologia e emoção (compaixão, empatia etc.).

Deduções. O general Medici, no começo de seu mandato, deveria ter passado uma noite, incógnito, numa reunião de estudantes de esquerda. Fidel Castro deveria ter cortado a barba para insinuar-se num bar gay de La Havana, e o presidente Bush deveria ter deixado crescer a barba para freqüentar uma mesquita de Bagdá.
Stalin deveria ter vivido uma temporada entre os camponeses soviéticos; Nixon e Kissinger deveriam ter plantado arroz num vilarejo do Vietnã. Pode ser que não por isso eles tomassem decisões diferentes das que tomaram, mas, no mínimo, como mostram Greene e Cohen, eles teriam hesitado.
Entre os dilemas propostos por Greene e Cohen, aliás, há o caso de quem deve aprovar políticas que alvejam o bem da maioria (ou mesmo, a longo prazo, o de todos), mas que produzem mortes ou danos imediatos. A escolha é muito mais penosa para o governante que enxerga, nos governados, seu próximo. O bom governante é uma figura trágica, pois sempre chega o dia em que ele é levado a decidir, de uma maneira ou de outra, num conflito entre razão e empatia.

Ora, em nossa sociedade, há um exército de desfavorecidos que não decide quase nada. E as decisões dos favorecidos se parecem com o gesto de quem aciona o interruptor no dilema do trem de Greene e Cohen: o fosso que nos separa de quem não tem nada é tamanho que é fácil agir sem empecilhos emocionais. Por exemplo, é cômodo, moralmente, apropriar-se de dinheiro público, pois a figura de quem sofrerá pelo abuso é distante: um número.
A experiência de Greene e Cohen sugere que nossos atos são diferentes quando os outros não são números, mas semelhantes. Como produzir essa mudança?
Por exemplo, no futuro, uma reforma pedagógica poderia instituir o trabalho social concreto como matéria obrigatória para os alunos dos colégios privados. Mas, desde já, podemos inventar alguns truques para nos lembrar de que há semelhantes nas esquinas. Truques piegas, como minha proposta do panetone e dos brinquedos.

Feliz Natal a todos.


*por Contardo Calligaris,  psicanalista, doutor em psicologia clínica e colunista da Folha de São Paulo. Italiano, hoje vive e clinica entre Nova York e São Paulo.







quinta-feira, 25 de novembro de 2010


Desbravando os caminhos da Psicopatia

Há cerca de um ano, postei um texto neste mesmo espaço, onde falei sobre os “Caminhos da Psicopatia”.
O tema seguiu em minha mente e no último dia 10, após ser convidada a participar da Jornada de Estudos Psicodinâmicos da Unianchieta, voltei a mergulhar uma vez mais nos estudos sobre esta intrigante psicopatologia.
Conceitualizar a Psicopatia é realmente uma grande empreitada.

A Psicopatia, também conhecida como Sociopatia, tem sido associada ao protótipo do assassino em série, porém, nem todos os assassinos são psicopatas e nem todos os psicopatas chegam a ser assassino.
Descrita como um distúrbio mental grave, a psicopatia se caracteriza por um desvio de caráter, frieza, insensibilidade aos sentimentos alheios, manipulação, egocentrismo, falta de remorso e culpa. Sua vida afetiva é pobre e impessoal, são equilibrados e descontraídos em muitas situações nas quais qualquer outro estaria normalmente tenso e ansioso. Geralmente se apresentam como pessoas charmosas, eloqüentes, envolventes e sedutores. Caso sejam desmascarados em algum ato ilícito ou alguma mentira, não demonstram qualquer vergonha ou constrangimento.
Ao contrário, os psicopatas são extremamente hábeis para inverterem situações, ou seja, quando são pegos em algo ilícito recorrem rapidamente ao lugar vitimado e tratam a certeza como se fosse dúvida, o justo como se fosse injusto e a verdade como se fosse mentira. As regras e a leis sociais não despertam nos psicopatas qualquer inibição. Outra característica muito comum em indivíduos com este transtorno é a intolerância a frustrações - este talvez seja o único motivo que os faça chorar de verdade.
Esses indivíduos não são considerados loucos, nem apresentam qualquer tipo de desorientação. Também não sofrem de delírios ou alucinações, como na esquizofrenia e tampouco apresentam intenso sofrimento psíquico como os neuróticos. Ao contrário disso, seus atos criminosos provêm de um raciocínio frio e calculista.

Bem, até aqui procurei traçar as características da psicopatia, acerca da descrição dos sintomas. Porém, o que pensar quanto à etiologia, ao desenvolvimento e ao prognóstico desta intrigante psicopatologia?
Os termos “psicopatia”, “sociopatia” ou “transtorno de personalidade anti-social” são raramente utilizados em psicanálise. Na perspectiva psicanalítica, uma pessoa psicopata é uma pessoa perversa.
Tomo aqui como referência os estudos de Otto Kernberg, psiquiatra e psicanalista austríaco, que dividiu as manifestações perversas, sob o ponto de vista psicoestrutural, onde a Psicopatia é definida como uma das manifestações da perversão no âmbito social. Descrita por muitos autores como perversão de caráter.
As estruturas mentais do psicopata e do psicótico estariam muito próximas, com a diferença que o psicótico abandonou as relações com os objetos reais, criando através das alucinações uma “nova” realidade; enquanto o psicopata as manteve, mas com caráter muito particular. Pode haver também uma confusão entre o neurótico e o psicopata em função da atuação, na qual os sintomas comportamentais de agressividade e anti-sociais são comuns. Daí o cuidado que devemos ter na compreensão e exploração dos comportamentos anti-sociais apresentados, antes da classificação diagnóstica, uma vez que vários quadros clínicos podem apresentar características anti-sociais.
O psicopata propriamente dito, tem como característica primordial uma incapacidade de sentir culpa e remorso.
Assim, para reconhecer a psicopatia é preciso avaliar a existência ou não de uma instância moral ou de valores para o próprio sujeito. Ou seja, como ele se coloca (ou não) a questão de um compromisso com alguma lei internalizada.
Chegamos aqui no momento de falarmos do superego, um conceito determinante para entendermos a psicopatia.

Segundo Freud, a formação do superego é correlativa do declínio do complexo de Édipo: a criança, renunciando à satisfação de seus desejos edipianos marcados pela interdição, transforma o seu investimento nos pais em identificação com os pais.
Em “O Ego e o Id” de 1923, Freud dirá: “e aqui temos essa natureza mais alta, neste ideal do ego ou superego, o representante de nossas relações com nossos pais. Quando éramos criancinhas, conhecemos essas naturezas mais elevadas, admiramo-las, tememo-las e, posteriormente colocamo-las em nós mesmos”.
Assim, o superego é o resultado dos valores morais, éticos e sociais que herdamos dos nossos pais, quando da dissolução do complexo de Édipo. O que ocorreu na formação do superego do psicopata?
O curso regular do seu complexo de Édipo não aconteceu, o sujeito não ascendeu às fases do desenvolvimento da libido no sentido de fazer investimentos em objetos externos. Trata-se de uma problemática em torno do Narcisismo.
O psicopata possui uma falha na formação superegoica; ele reconhece a realidade, sabe que seus atos poderão prejudicar o outro, mas tem um código moral falho. Ele tem uma pobreza do mundo de fantasias, por isso recorre ao ato. Ao invés de pensar e fantasiar ele age.
O psicopata não se considera uma pessoa doente, portanto ele raramente busca ajuda. Quem geralmente nos procura nos consultórios não são os psicopatas, mas algum familiar que sofre as conseqüências dos atos psicopáticos, ou alguém que com ele se envolveu e geralmente saiu profundamente lesado, seja psiquicamente, financeiramente ou mesmo fisicamente.

Como falei anteriormente, o psicopata nem sempre é assassino, violento ou mesmo assustador. . .
Dentro desta psicopatologia temos um espectro que vai desde casos mais graves e agressivos, onde houve maior prejuízo do superego, até um grau mais atenuado onde aparecem graus variados de manifestações psicopáticas. Surge aí o psicopata do tipo “passivo-parasita” como definiu Kernberg. São sedutores, simpáticos, geralmente com uma história vitimada e triste para contar e comover a todos. Adoram presentear e elogiar e quando menos se espera aplicam seus botes. Nesses casos, as verdadeiras vítimas freqüentemente se questionam quanto a sua responsabilidade sobre a situação, pois tardam a reconhecer que foram enganadas e ludibriadas.
O psicopata seduz não apenas pela voz doce ou pelo olhar vitimado, mas também e principalmente, pela ousadia com que burlam a lei. Pela ousadia com que nos deixam acreditar que tudo é possível. Frente a eles nos vemos paralisados e até mesmo, porque não dizer, admirados. Afinal, para nós, simples neuróticos, seria impossível prejudicar outra pessoa sem experimentarmos culpa e um tremendo remorso, ao contrário do psicopata, que se posiciona livremente em relação às regras morais e sociais.
Felizmente sentimos culpa! Porque é este sentimento que nos mostra até onde podemos ir, que há limites e há leis a serem seguidas. E que temos estruturado um superego que funciona como mediador entre nossos impulsos mais intempestivos e a realidade.

O psicopata é quem não tem culpa! O psicopata é quem não se reconhece doente e é ele quem não busca análise!


Edilaine Bronzeri Pugliese
Psicanalista


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro, me sabe mais que me sei.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, "As contradições do Corpo",
in Corpo novos poemas

Anorexia, bulimia e a psicanálise

Na manhã do último dia 25 de setembro, sob o título: “A problemática alimentar, o corpo e a feminilidade”, falei sobre anorexia e bulimia. Esse tema deu início às “Atualizações em Psicanálise” promovido pelo TRIEP.
Para transmitir os fundamentos e princípios norteadores de meus estudos sobre anorexia e bulimia disparados pelas inquietações da clínica priorizei, no que diz respeito à teoria psicanalítica, o arcaico: o investimento libidinal realizado pela mãe junto ao seu bebê.
Fiz essa escolha por entender que a consideração que o sujeito dará ao seu próprio corpo e sua constituição em um ser desejante dependerá do investimento que a mãe operou no seu corpo, é a fase do auto-erotismo.
Além de que, é nesta fase que a função alimentar exerce um papel importante de apoio às instâncias reguladoras da vida psíquica.
Quando falamos deste investimento entendemos que a mãe age a fim de conter o quê aflige o corpinho do bebê no que se refere ao acúmulo de excitações provenientes de fontes internas e externas.
A mãe exerce, também, uma mediação entre o bebê e o mundo externo, supondo neste, mais do que demanda de alimento, nomeando vai transformando este “corpo de sensações” num “corpo falado”.
Nos relatos de pacientes anoréxicas, bulímicas e na literatura a respeito encontramos uma mãe que domina a cena familiar, que não dirige seus desejos para outros objetos, o que não permite a entrada do pai em cena. E, também, uma mãe que não suporta o afastamento da filha quando isso seria imprescindível no processo de construção da identidade.
Já, as pacientes anoréxicas, por exemplo, não percebem seu emagrecimento com risco de morrer e, tanto essas quanto as bulímicas, não conseguem reconhecer e nomear o quê sentem, seja dor, fome ou se quer falar de seus sentimentos. Portanto podemos dizer que estamos diante de falhas num período primordial da vida destas pacientes.
Destaquei na minha transmissão os tópicos: sociedade contemporânea e subjetivação na mulher para buscar compreender através da psicanálise questões como: o corpo colocado em evidência e a maior incidência de anorexias e bulimias na mulher adolescente/jovem adulta comparada ao adoecimento nos homens.
Trabalhei a limitação das descrições e classificações dos manuais psiquiátricos frente a singularidade que as dimensões subjetivas podem tomar nas histórias de vidas de nossos pacientes.
Apresentei a anorexia e bulimia como sintomas que podem estar presentes nos mais variados quadros psicopatológicos, sejam eles de ordem neurótica ou psicótica; e que, como sintomas, tem a função de uma tentativa de sobrevivência psíquica perante a situação conflitiva, neste caso, a tentativa de construção de uma outra feminilidade diferente do modelo materno.
Muito interessante foi a discussão que se seguiu com a colocação do público presente que trouxe questões técnicas como: o uso do divã, sobre a organização psíquica da mãe dessas pacientes e a simbiose entre as duas, sobre as convocações do analista à atuações, sobre o analista fazendo o papel de terceiro, entre outras.
Enfim, como Freud continuou a desenvolver a teoria em decorrência das limitações impostas pelos impasses vividos na sua clínica, nós psicanalistas, perante as queixas relacionadas ao comportamento alimentar que motivam a procura de análise e frente a tantas outras formas de sofrimento psíquico priorizadas na atualidade, nos sentimos impulsionados em nossos estudos a refletir a respeito dos princípios teóricos, técnicos e metodológicos da psicanálise para encontrar um lugar de escuta mais fértil para a especificidade desses fenômenos clínicos.

Patrícia Merli Macieira Matalani
Psicanalista







segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Desejo edipiano na política*
 Revista Não Lugar, Série Inimigos, páginas 52 a 61

É inequívoco o teor político de Inimigos, trabalho de Gil Vicente agora exposto na Bienal. São "autorretratos" do artista matando Lula, FHC, rainha Elizabeth, papa Bento XVI, Kofi Annan, Eduardo Campos, George Bush, Ariel Sharon, Jarbas Vasconcelos.
Essa dimensão polêmica fica agora potencializada por coincidir sua exposição com o momento pré-eleitoral.
De fato, essas circunstâncias dão mais força a algumas imagens, como a de Lula sendo garroteado pelo artista e prestes a ser por ele degolado. Não poderia ser mais gritante o contraste que ela estabelece com a tão apregoada popularidade do presidente, que lhe garante 80% de aprovação dos eleitores.
Poderíamos ver esse contraste como um exemplo da diferença entre o funcionamento psíquico próprio das massas em oposição à forma de pensar do sujeito fora das massas. A psicologia das massas se caracteriza por sua identificação com um líder que ocupa o lugar de figuras paternas idealizadas.
Isso faz com que as massas adotem uma postura infantilizada frente ao líder, que é visto como um pai ou uma mãe que as protege e conduz, fantasia inconsciente muitas vezes deliberadamente manipulada pelo poder. Já o sujeito fora das massas - e ninguém mais que o artista para representar essa condição - mantém o espírito crítico frente ao líder e, apesar de não estar isento de nele também fazer projeções, pode vê-lo com mais objetividade. Para ele, tais "pais" ou "mães" são vistos como inimigos a serem eliminados. Ou seja, para o artista, a sociedade não deve ser regida por "pais" e "mães" onipotentes e sim por cidadãos como ele, a quem delega temporariamente o poder e de quem exigirá uma prestação de contas no seu devido tempo.
Em nosso caso brasileiro, à primeira vista podemos pensar que a posição infantil, dependente e acrítica das massas se deve à sua indiscutível ignorância. Tal ideia logo se mostra insustentável ao lembramos que essa mesma atitude foi tomada pelas massas letradas e instruídas da Europa frente a Mussolini e Hitler, no século passado. A popularidade do líder depende dos elementos psíquicos inconscientes já mencionados, reforçados por fatores advindos da realidade sócio-econômico-cultural.
Mas a dimensão política de Inimigos não pode ser confundida com uma estreita atitude panfletária ou partidária. O variado espectro ideológico dos líderes "assassinados" pelo artista mostra que o que está em jogo é algo maior, é a revolta crítica contra o poder instituído e seus infindáveis desmandos, é o cansaço e a saudável intolerância com os embustes e fraudes que se escondem nas pompas e circunstâncias que envolvem os mandatários.
A identificação daqueles que estão no exercício do poder com figuras paternas faz com que a observação de Inimigos possa evocar nos espectadores a fantasia do assassinato do pai.
Tal fantasia ocupa lugar central na teoria psicanalítica, sendo detalhadamente explorada nas elaborações sobre o complexo de Édipo (processo que estrutura o sujeito) e em Totem e Tabu (mito antropológico de larga envergadura criado por Freud para explicar a gênese da cultura).
De certa forma, podemos dizer que, nesses dois momentos, o assassinato do pai tem conotações diferentes. No complexo de Édipo, o pai é o rival frente ao objeto de desejo (mãe) e agente da interdição do incesto, o que possibilita o crescimento do filho, além de ser para ele um modelo identificatório. Em Totem e Tabu, o pai da horda primitiva é a encarnação da onipotência narcísica que impede o desenvolvimento dos filhos, vistos por ele como rivais a serem eliminados. Se o assassinato do pai teria efeitos catastróficos no complexo de Édipo, em Totem e Tabu ele é a condição necessária para o aparecimento da lei, da religião, da moral e da organização social, pois ao assassinato se sucede a culpa dos filhos, o que leva à internalização das leis do pai morto.
Se temos esse modelo freudiano em mente, a obra de Gil proporcionaria ao espectador uma dupla gratificação. Satisfaria seus desejos edipianos de matar o pai enquanto rival frente a mãe, ao mesmo tempo que remete ao assassinato do pai primevo, o tirano possessivo e violento que impõe seu desejo sem restrições, pois a lei só será instaurada após (e em função de) sua morte.
Diríamos que os poderosos que Gil Vicente "assassina" não são pais edipianos, portadores e mantenedores da lei. Os políticos estão bem mais próximos dos pais da horda primitiva, onipotentes e vorazes usurpadores que se colocam num espaço acima da lei e veem o poder como a oportunidade para dar vazão ao narcisismo mais predatório.


SÉRGIO TELLES, psicanalista e escritor, autor de Fragmentos Clínicos de Psicanálise (Casa do Psicólogo), entre outros. 
*artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

UMA VIDA SEM SUJEITO*

A depressão é uma forma muito particular e avassaladora daquilo que corriqueiramente chamamos a dor de viver. Juntamente com a angústia e a dor propriamente dita, é uma constelação de afetos tão familiar que, como escreve Daniel Delouia[1], dificilmente conseguimos classificá-la entre os quadros clínicos da psicopatologia. À dor do tempo que corre arrastando consigo tudo o que o homem constrói, ao desamparo diante da voragem da vida que conduz à morte - que para o homem moderno representa o fim de tudo - a depressão contrapõe um outro tempo, já morto: um "tempo que não passa", na expressão de J. Pontalis.
O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada onde o sujeito tenta instalar, fantasmaticamente, o objeto perdido - objeto que, paradoxalmente, nunca existiu.


A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra este pano de fundo de nonsense, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços - "destinos pulsionais", como se diz em psicanálise - que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.

Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros, e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com esta multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente.
A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do "amor", trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles. "A depressão é uma imperfeição do amor", escreve Andrew Solomon, autor de O demônio do meio-dia[2], vasto tratado sobre a depressão publicado nos Estados Unidos e traduzido no Brasil no final de 2002. Faz sentido, se considerarmos o sentido mais amplo da palavra amor. Durante cinco anos Solomon dedicou-se a pesquisar a depressão: causas e efeitos, tratamentos, hipóteses bioquímicas, estatísticas. Recolheu histórias de vida de dezenas de pessoas que passaram por crises depressivas - "nunca escrevi sobre um assunto a respeito do qual tantos tivessem tanto a dizer". A estas, acrescentou sua própria história - o trabalho no livro foi uma forma de reação ao longo período em que ele próprio passou por sérias crises depressivas. Um período em que, nas palavras do autor, "cada segundo de vida me feria".
A julgar pelos números recolhidos por Solomon em relatórios da divisão de saúde mental da Organização Mundial de Saúde - o DSM-IV - esta ferida acomete a um número cada vez maior de pessoas no mundo, e particularmente nos Estados Unidos. 3% da população norte americana sofre de depressão crônica - cerca de 19 milhões de pessoas, das quais 2 milhões são crianças. A depressão é a principal causa de incapacitação em pessoas acima de cinco anos de idade. 15% das pessoas deprimidas cometerão suicídio. Os suicídios entre jovens e crianças de 10 a 14 anos aumentaram 120% entre 1980 e 1990. No ano de 1995, mais jovens norte americanos morreram por suicídio do que de da soma de câncer, Aids, pneumonia, derrame, doenças congênitas e doenças cardíacas.
Esta forma de mal estar tende a aumentar, na proporção direta da oferta de tratamentos medicamentosos: há vinte anos, 1,5% da população dos Estados Unidos sofria de depressões que exigiam tratamento. Hoje este número subiu para 5%. Sincero adepto dos tratamentos farmacológicos, que segundo ele salvaram sua vida, Andrew Solomon acaba por se perguntar se a doença cresce com o desenvolvimento da medicina ou se a indústria farmacêutica produz as doenças para os remédios que desenvolve, do mesmo modo que outros ramos industriais criam mercados para seus produtos. Insight sem inconsciente?
A contribuição das terapias medicamentosas no tratamento das doenças mentais é inegável, e o analista, assim como outros "terapeutas da fala" no dizer de Solomon, não podem dispensá-la. "O Prozac não deveria tornar o insight dispensável,", diz Robert Klitzman, da Universidade de Colúmbia, citado pelo autor. "Deveria torná-lo possível".
Mas qual o insight possível, capaz de produzir efeitos sobre a subjetividade, em uma cultura onde as práticas de linguagem se impõem fortemente de modo a apagar o sujeito do inconsciente? As histórias de pacientes depressivos enumeradas por Andrew Solomon centram-se ao redor da perspectiva única do vitimismo. As pessoas se deprimem porque não suportam o que foi feito a elas. Acidentes, perdas traumáticas, abandonos, violência, abuso sexual na infância; é de fora para dentro que a vida psíquica se impõe àqueles que sofrem de mal estar.
É óbvio que a rede de proteção do psiquismo pode ser rompida pelas irrupções traumáticas do real; mas as "desgraças da vida" recaem sempre sobre um sujeito, incidem sobre uma posição desejante e são rearticuladas pelas formações do inconsciente, que são formações da linguagem. Do ponto de vista do vitimismo, a cura da depressão consiste na eliminação de todo traço de "má notícia" que advenha do inconsciente. A psiquiatria e a indústria farmacêutica aliam-se a este ponto de vista. "Assistimos a um conluio curioso entre a descrição psiquiátrica e a própria queixa do deprimido", escreve Delouia (p.24). "A ignorância a respeito do psíquico "une o fenômeno depressivo com a parafernália nosográfica da psiquiatria".
O autor não deixa de ser crítico em relação a esta perspectiva. "Nós patologizamos o curável. Quando existir uma droga contra a violência, ela será encarada como uma doença". Também é crítico em relação ao ideal de remoção química de toda a dor de existir. No entanto, a ingenuidade a respeito da realidade psíquica prevalece até mesmo em relação à sua própria crise depressiva. Filho de uma mulher ativa e absorvente, que mais tarde ele próprio pode perceber como depressiva, Andrew Solomon participou, junto com o pai e o irmão, do suicídio assistido da mãe, vítima de câncer no ovário aos 58 anos. Depois dessa morte, dramática e intensamente estetizada, a fantasia de suicídio ocorre aos outros membros da família. No ano seguinte Solomon inicia uma análise com uma mulher que lhe lembra a mãe, e propõe a ela um pacto incondicional: não abandonarão o tratamento até o "fim", sob nenhuma condição. Mas alguns anos depois a analista anuncia ao dedicado analisando que vai deixar o trabalho. Aposentadoria por tempo de serviço...
No tempo de análise que lhe resta, Andrew Solomon não entende por que vai entrando em depressão cada vez mais grave, até que a própria analista concorda em que ele busque auxílio psiquiátrico. A análise "termina" pouco depois, e ele atravessa um ciclo de depressões gravíssimas. A inabilidade da analista de Solomon quanto ao manejo da transferência diante de um quadro de luto melancólico salta aos olhos do leitor familiarizado com a psicanálise. Não é sem razão que ele escreve, anos mais tarde, que a psicanálise seja "hábil para explicar, mas não eficiente para mudar" os quadros depressivos.
A julgar pelo relato de Solomon, seu tratamento psicanalítico foi baseado na reconstituição da vida infantil, em busca de um causalidade psíquica que, de fato, pode ter valor explicativo mas não produz nenhuma intervenção sobre o psiquismo vivo e ativo no sujeito adulto. Pierre Fédida, em seu livro sobre a depressão [3], adverte sobre os riscos de se buscar a evocação de um "acontecimento real que se supõe empiricamente traumático: a vivência infantil - essencialmente inatual na fala associativa - recebe assim uma positividade patogênica, na forma de uma atualidade passada" (p.91). O "infantil" que interessa à psicanálise não é o do passado, rememorado pelo eu, mas o que se manifesta ao vivo na transferência, nas demandas dirigidas ao analista. Como a analista de Solomon não se deu conta da relação entre a proposta de uma análise incondicional feita por ele, o amor pela mãe e o pacto de morte que o uniu a ela? Como não se deu conta da relação entre a crise depressiva de seu analisante e o anúncio burocrático de sua "aposentadoria"?
O livro de Solomon não oferece nenhuma contribuição decisiva para o conhecimento da depressão mas lança uma luz importante sobre as relações entre a emergência epidêmica dessa forma de mal estar e os modos de subjetivação predominantes na cultura norte americana. Em uma sociedade onde as formações discursivas apagam o sujeito do inconsciente, em que a felicidade e o sucesso são imperativos superegóicos, a depressão emerge - como a histeria na sociedade vitoriana - como sintoma do mal estar produzido e oculto pelos laços sociais. O vazio depressivo, que em muitas circunstâncias pode ser compensado pelo trabalho psíquico, é agravado em função do empobrecimento da subjetividade, característico das sociedades consumistas e altamente competitivas. A "vida sem sentido" de que se queixam os depressivos só pode ser compensada pela riqueza do trabalho subjetivo, ao preço de que o sujeito suporte, amparado simbolicamente pelo analista, seu mal estar. A eliminação farmacológica de todas as formas de mal estar produz também, paradoxalmente, o apagamento dos recursos de que dispomos para dar sentido à vida.

Maria Rita Khell é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. É autora de vários livros.
 *texto extraído do site http://www.mariaritakehl.psc.br/
[1] Ver Daniel Delouia, Depressão. São Paulo, Editora Casa do Psicólogo, 2002
[2] Andrew Solomon, O demônio do meio dia Rio de Janeiro: Ed.Objetiva, 2002
[3] Pierre Fédida, Depressão. São Paulo, Editora Escuta, 1999.






segunda-feira, 19 de julho de 2010

quinta-feira, 8 de julho de 2010


Os “dez bons livros” de Freud

Em 1° de novembro de 1906, Sigmund Freud respondeu a uma carta do editor e livreiro Hugo Heller. Heller (1870-1923) era proprietário de uma livraria vienense, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Em sua carta, enviada a diversos escritores, artistas e cientistas, Heller solicitava que o destinatário indicasse “dez bons livros”.
Freud respondeu o seguinte:

“O sr. deseja que eu lhe indique “dez bons livros”, e recusa-se a acrescentar uma palavra de explicações. Com isso, o sr. me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido. Habituado a prestar atenção a pequenos indícios, devo ater-me à formulação literal de sua enigmática pergunta. O sr. não disse “as dez maiores obras da literatura mundial”, caso em que, como tanto outros, eu teria que responder com Homero, com as tragédias de Sófocles, com o Fausto de Goethe, com o Hamlet de Shakespeare, com MacBeth etc. Não se trata, tampouco, dos dez livros mais significativos, entre os quais teriam que figurar os trabalhos científicos de Copérnico, do velho médico Johann Weier, sobre a feitiçaria, de Darwin, sobre a origem do homem, e muitos outros. O sr. não indagou sequer sobre os meus livros favoritos, entre os quais eu não teria esquecido o Paradise Lost de Milton e o Lazarus de Heine. A meu ver, seu texto põe um acento especial na palavra bons, e com esse predicado o sr. quer caracterizar os livros com que nos relacionamos do mesmo modo que com bons amigos, aos quais devemos algo do nosso conhecimento da vida e da nossa concepção do mundo, cujo contato nos proporcionou prazer, e que elogiamos diante de outros, sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia. Indico-lhe portanto esses “bons livros”, que me vieram à mente sem muita reflexão.
Multatuli: Cartas e obras
Kipling: O livro da jângal
Anatole France: Sobre a pedra branca
Zola: Fecundidade
Merejkovski: Leonardo da Vinci
Gottfried Keller: A gente de Seldwyla
Conrad Ferdinand Meyer: Os últimos dias de Hutten
Macauley: Ensaios
Gomperz: Pensadores gregos
Mark Twain: Esboços
Não sei o que o sr. pensa fazer com essa lista. A mim mesmo, ela me parece estranha, a tal ponto que não posso abandoná-la sem acrescentar meus comentários. Não quero examinar por que esses e não outros “bons” livros, mas apenas esclarecer a relação entre o autor e sua obra. Nem sempre essa relação é tão óbvia como a que existe entre Kipling e Jungle Books, por exemplo. Na maioria dos casos, eu teria podido selecionar outra obra do mesmo autor, como por exemplo o Docteur Pascal, de Zola. O mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes nos deu também de presente vários bons livros. No caso de Multatuli, sinto-me impossibilitado de dar preferência a Cartas de amor em detrimento das cartas particulares, ou vice-versa, e por isso escrevi: Cartas e obras. Excluíram-se obras essencialmente literárias, de valor puramente poético, talvez porque seu pedido – bons livros – não parecesse referir-se diretamente a tais obras. Assim, no caso de Hutten, de C.F. Meyer, o “bom” prevaleceu sobre o “belo”, a “edificação” sobre o prazer estético.
Ao solicitar-me que indicasse “dez bons livros”, o sr. tocou num ponto sobre o qual muitíssimas coisas poderiam ser ditas. Termino, pois, para não ficar ainda mais loquaz.

Sigmund Freud

Extraído do livro Os dez amigos de Freud, de Sergio Paulo Rouanet - Companhia das Letras - São Paulo, 2003.

sexta-feira, 28 de maio de 2010


A DIFICULDADE DE DIZER NÃO (OU SIM)*

A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir

DURANTE toda minha infância, eu dizia "não" mesmo quando queria dizer "sim". Usava o não como uma palavra de apoio, uma maneira de começar a falar. Minha mãe: "Vou sair para fazer compras; algo que você gostaria para o jantar?". Eu, enérgico: "Não", acrescentando imediatamente: "Sim, estou a fim de ovos fritos (ou sei lá o quê)". Os adultos tentavam me corrigir: "Então, é sim ou não?". "Não, é sim", eu respondia.
Entendi esse meu hábito muito mais tarde, quando li "O Não e o Sim", de René Spitz (ed. Martins Fontes). No fim da faculdade, Spitz era um dos meus autores preferidos, o único, a meu ver, que conciliava a psicanálise com o estudo experimental do desenvolvimento infantil. No livro, pequeno e crucial, Spitz nota que, nas crianças, o uso do "não" aparece por volta do décimo oitavo mês de vida, logo quando elas costumam falar de si na terceira pessoa, como se precisassem (e conseguissem, enfim) se enxergar como seres distintos dos outros. Para Spitz, a aquisição da capacidade de dizer "não" é um grande evento da primeira época da vida: a conquista da primeira palavra que serve para dialogar e não só para designar um objeto. Mas, cuidado, especialmente no segundo ano de vida, o "não" teimoso da criança não significa que ela discorde do que está lhe sendo proposto ou imposto: a criança diz "não" para afirmar que, mesmo ao concordar ou obedecer, ela está exercendo sua própria vontade, a qual não se confunde com a do adulto.
Em suma, durante muito tempo, eu persisti na atitude de meus dois anos. Mais tarde, consegui me corrigir. Mas em termos; sobrou-me uma paixão pelas adversativas: mal consigo dizer "sim" sem acrescentar um "mas" que limita meu consentimento. É um jeito de dizer que aceito, mas minha aceitação não é incondicional. "Vamos ao cinema?". "Sim, mas à noite, não agora." O uso do sim e do não, no discurso de cada um de nós, pode ser um indicador psicológico valioso. Mas, para isso, é preciso distinguir entre "sim" e "não" "objetivos", que têm a ver com a questão da qual se trata (quero ou não tomar café ou votar nas próximas eleições), e "sim" e "não" "subjetivos", que são abstratos, ou seja, que expressam uma disposição de quem fala, quase sem levar em conta o que está sendo negado ou afirmado.
Se o "não" subjetivo é um grito de independência, o "sim" subjetivo é uma covardia, consiste em concordar para evitar os inconvenientes de uma negativa que aborreceria nosso interlocutor. Alguns exemplos desse "sim" covarde (e, em geral, objetivamente mentiroso). "Respondeu à minha carta?" "Sim, já mandei." "Gostou de minha performance?" "Sim, adorei." "Quer me ver de novo?" "Sim, te ligo amanhã." Mas também: "Você vai assinar a petição para expulsar os judeus do ensino público?" "Claro, claro, estou assinando."
Acontece que dizer "não" é arriscado. A confusão com o outro, aquela confusão que ameaça a primeira infância e contra a qual se erguia nosso "não" abstrato e rebelde, é substituída, com o passar do tempo, por mil dependências afetivas: "Desde os meus dois anos, não sou você, não me confundo com você, existo separadamente, mas, se eu perder seu amor (sua amizade, sua simpatia, sua benevolência), quem reconhecerá que existo? Será que posso existir sem a aprovação dos outros?". Em suma, o sim subjetivo é um consentimento abstrato (o objeto de consenso é indiferente e pode ser monstruoso), pois o que importa é agradar ao outro, não perder sua consideração. A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir. Por sua vez, nossa covardia fomenta explosões negativas, tanto mais violentas quanto mais nossa concordância foi preguiçosa. À força de dizer "sim" para que o outro goste de mim, eu corro o perigo de me perder e, de repente, posso apelar à negação abstrata, espalhafatosa e violenta, só para mostrar que não me confundo com o outro, penso com a minha cabeça. Bom, Spitz tinha razão, o uso do não e do sim permitem o diálogo humano. Mas é um diálogo que (sejamos otimistas) nem sempre tem a ver com as questões que estão sendo discutidas; ele tem mais a ver com uma necessidade subjetiva: digo "não" para me separar do outro ou digo "sim" para obter dele um olhar agradecido. Nos dois casos, tento apenas alimentar a ilusão de que existo.

Contardo Calligaris é psicanalista, doutor em psicologia clínica (Université de Provence) e colunista da Folha de S.Paulo. Italiano, hoje vive e clinica entre Nova York e São Paulo.
*Artigo publicado na Fôlha de São Paulo em setembro de 2009.

segunda-feira, 26 de abril de 2010


Análise Institucional: uma clínica psicanalítica
Freud nunca negligenciou a técnica psicanalítica e se ocupou dela ora em momento específico de sua escrita, ora de maneira diluída nas análises de casos clínicos e nas considerações conceituais.
Podemos verificar na elaboração teórica freudiana a marca do privilégio da escuta do sofrimento psíquico em sua excentricidade. As perguntas que chegavam da clínica o faziam pensar e repensar analiticamente, não constituindo somente um espaço de mera aplicação do já conceitualizado. O refazer teórico característico da obra freudiana, ainda hoje, propicia a existência de perspectivas de conceber a prática analítica como um campo de investigação e tratamento não homogêneo.
Acreditamos fundamental a recriação da psicanálise em cada possibilidade de escuta do sofrimento em seus aspectos singulares e coletivos, e daí abordamos possibilidades clínicas que extrapolam a prática de consultório – individual.
A Análise Institucional, uma abordagem que desenvolve um conjunto de conceitos e instrumentos para a análise e intervenção nas instituições, surgiu no Brasil nos anos 70, congregando os mais diferentes tipos de profissionais. A expressão análise institucional não tem um sentido único, pois na realidade, ela se constituiu a partir de um conjunto de disciplinas e movimentos que ocorreram na sociedade francesa, a partir dos anos 40 e 50.
Consideramos a "análise institucional" e a "socioanálise", de tradição dialética, originadas, sobretudo das obras de René Lourau e Georges Lapassade, e, de outro lado, a "esquizoanálise", inspirada na filosofia da diferença, relacionada a Félix Guattari e Gilles Deleuze.
Utilizamos a Análise Institucional como um recurso para atuar/intervir no interior de instituições, apoiada na referência psicanalítica, fazendo uma articulação com conceitos da análise institucional que se demonstraram potentes para o entendimento dos elementos do imaginário social atravessadores das práticas institucionais. Trata-se de considerar a saúde mental coletiva da instituição, o que significa examinar a presença de processos grupais dentro do psiquismo individual, ou seja, é possível analisar o discurso de um grupo como uma cadeia de associações onde se produzem diversos mecanismos psíquicos como são os deslocamentos, a condensação entre outros e fantasias referentes àquilo que suscita o encontro grupal.
A cura é pela fala, e permitir um grupo falar ou discursar sobre si mesmos, ou falar sobre as relações de trabalho, o dia a dia, tem uma função terapêutica dentro de uma instituição seja esta de cura, pedagógica ou de prestação de serviços. A psicanálise neste tipo de intervenções vai ao encontro de uma demanda e poderá haver um ato analítico se houver um profissional escutando e interpretando um grupo ou uma equipe discursando livremente. O grupo que descrevo aqui tem como tarefa, falar tudo aquilo que quiserem, referido de preferência ao trabalho, ao dia a dia, as relações entre colegas, com chefias, entre eles e outros setores da empresa. Em síntese falar tudo aquilo que quiserem sobre o cotidiano no trabalho. O importante é que este grupo analítico tem como finalidade realizar uma "cura" ou desvencilhar os processos inconscientes ou descobrir a origem das dificuldades.
O grupo analítico é um trabalho dentro do espaço institucional, organizacional e empresarial aonde o "discursar sobre o dia a dia de trabalho" permite elaborar as relações de trabalho, aprender a reconhecer as próprias limitações, encontrar um sentido a própria dificuldade, aceitar as diferenças, reconhecer o outro.
O trabalho psicanalítico dentro de uma instituição, portanto, não se limita ao espaço íntimo do encontro analítico com o paciente e nem um pouco o reproduz em “grupo”. É necessário pensar e refletir alguns aspectos específicos do quadro estabelecido pela e com a instituição. Como cada instituição apresenta suas próprias normas e leis de funcionamento, torna-se extremamente complexo o estudo dos vínculos institucionais. E, além disso, cada instituição vai constituindo, ao longo de sua história, posições fantasmáticas em relação à população que atende, ao redor do material que trabalha. Nessa relação, a instituição se encontra numa tensão permanente entre a separação e a alienação à imagem que constrói de seus clientes/usuários. Essa imagem, que regula as relações entre os agentes institucionais e seus clientes, está alicerçada numa construção social mais ampla, onde encontramos influências de todo tipo: históricas, políticas, estéticas, midiáticas, etc., que funcionam como poderosos obturadores à possibilidade do encontro singular, à emergência de um sujeito, a uma lógica discursiva que aponta para a alteridade, para a produção de diferença.
Em 1930, Freud ressalta no seu trabalho “O mal estar na civilização” que o futuro da humanidade depende de como os homens enfrentam as perturbações coletivas. A psicanálise pode contribuir imensamente ao oferecer um espaço de elaboração da realidade psíquica mobilizada ou sustentada pelas instituições. A oportunidade de analisar e refletir sobre as dificuldades humanas no enfrentamento da realidade de uma instituição/empresa/organização, pode viabilizar as elaborações necessárias ao nosso próprio futuro.
DAISY MARIA RAMOS LINO
Psicanalista, Analista institucional e Responsável Técnica TRIEP

sábado, 27 de março de 2010


Sigmund Freud como no original*Trabalhos do criador da psicanálise ganham novas traduções feitas diretamente do alemão

Recentemente colocados sob domínio público, os textos de Sigmund Freud (1856- 1939) já começam a chegar às livrarias em suas novas roupagens, como esta providenciada pela Companhia das Letras. A editora planeja o lançamento da obra completa traduzida diretamente do alemão pelo germanista Paulo César de Souza (a exemplo do que vem fazendo a Imago desde 2004, sob coordenação de Luiz Alberto Hanns). O projeto editorial, organizado em 20 volumes, respeita a sequência cronológica dos textos, mas lança inicialmente os títulos publicados por volta de 1915, ou seja, de um período no qual o pensamento freudiano estava consolidado e em expansão teórica. Assim aparecem agora os volumes 10 (Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranóia Relatado em Autobiografia - O Caso Schreber -, Artigos sobre Técnica e Outros Textos - 1911-1913); 12 (Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos - 1914-16); e 14 (História de Uma Neurose Infantil - O Homem dos Lobos -, Além do Princípio do Prazer e Outros Textos - 1917-20).
Temos aí trabalhos teóricos e técnicos da maior importância e dois dos famosos casos clínicos de Freud, o Caso Schreber e O Homem dos Lobos, que certamente encantarão o leitor curioso. Schreber foi um importante magistrado alemão que escreveu um registro biográfico no qual expõe com riqueza de detalhes (embora a família tenha censurado grande parte do texto) a transformação de seu corpo para ser a mulher de Deus e com ele engendrar uma nova raça de homens. A partir deste livro, Freud retraça as origens e os significados do delírio, mostrando como mesmo as ideias mais loucas e descabidas podem ser compreendidas, desde que remetidas à lógica própria do inconsciente. O mesmo pode ser dito sobre O Homem dos Lobos, jovem russo e rico que perambulava pela Europa atrás de quem o curasse de suas angústias e que, aos 4 anos, tivera um sonho no qual via uma árvore em cujos galhos estavam sentados alguns lobos (razão do apelido com o qual ficou conhecido), o que permitiu a Freud realizar uma controvertida construção.
Concomitantemente às obras de Freud, a editora relança a tese de doutorado do tradutor, As Palavras de Freud - O Vocabulário Freudiano e Suas Versões, defendida na USP, centrada no exame das dificuldades apresentadas na tradução de determinados termos "técnicos" fundamentais dentro da teoria freudiana. São eles Ich (ego), Es (id), Besetzung (catexia), Verdrängung (recalque ou repressão), Vorstellung (representação), Angst (angústia), Nachtraglichkeit (posterioridade), Verneinung (negação), Verwerfung (forclusão), Zwang (obsessão), Trieb (pulsão ou instinto) e Versagung (frustração). Esse foco poderia ter resultado em um texto árido, o que não ocorre, pois, para desenvolver a discussão filológica desses termos, Souza parte das duas grandes traduções paradigmáticas da obra freudiana que o antecederam - a inglesa Standard Edition, de James Strachey, e a Oeuvres Complètes, o projeto francês ainda em curso dirigido por Jean Laplanche - oferecendo um rico panorama de seus contextos históricos e institucionais. Seguimos com interesse o percurso da Standard Edition, durante décadas considerada o padrão-ouro das traduções dos textos freudianos. Seu prestígio diminuiu com o aparecimento das críticas de Bruno Bettelheim, publicadas - certamente não por coincidência - logo após a morte de Anna Freud, defensora de Strachey, fato que mostra a influência dos fatores políticos no trato da obra freudiana. Da mesma forma, tomamos conhecimento das grandes polêmicas que cercam ainda hoje a tradução francesa, vazada, na opinião de alguns, num bizarro "laplanchês". No capítulo sobre estilo e terminologia de Freud, Souza resume as análises estilísticas de Walter Muschg, Walter Schönau, François Roustang, Robert Holt, Patrick Mahony e Uwe Pörksen, dissecando os aspectos formais do texto freudiano, que oscila entre a prosa artística e a prosa científica, usando com desenvoltura tropos e figuras de retórica.
Souza faz uma anotação com a qual qualquer leitor de textos psicanalíticos imediatamente concorda: "Quem observa, ainda que panoramicamente, a produção e o modo de atuar dos meios psicanalíticos estrangeiros, constata um divórcio entre a prosa direta, sem adornos e apegada à referência clínica, própria da psicanálise nos países de expressão inglesa, e a prosa mais refinada e um tanto vaga, cônscia de si mesma e autorreferente, peculiar a boa parte do movimento psicanalítico francês." Nesse aspecto, os autores de língua inglesa, mesmo sem o talento literário de Freud, estão mais próximos de sua didática clareza, que procurou sempre se afastar das esfumaçadas formulações em que tão facilmente se abriga a falsa profundidade.

Sérgio Telles é psicanalista e escritor, autor de Visita Às Casas de Freud e Outras Viagens (Casa do Psicólogo), entre outros.

LançamentoDois eventos marcam o início da publicação destas novas traduções de Freud. No dia 29, começa, no CineSesc, a mostra Mal-Estar na Cultura. E, no dia 30, no Sesc Pinheiros, José Miguel Wisnik faz paralelos entre conceitos freudianos e obras literárias brasileiras, com participação de Caetano Veloso.


Resenha publicada no Jornal O Estado de São Paulo de 27/03/10

sexta-feira, 5 de março de 2010


ADOLESCÊNCIA E VIOLÊNCIA *

*(Artigo publicado na revista E-Sesc – no. 140 - Janeiro 2009)
“Em um mundo que parece cada dia mais violento, pretendemos debater a violência à qual os adolescentes, em especial, estão submetidos. Em que a violência da qual eles são vitimas se diferencia dos adultos? Quais são os riscos de uma adolescência submetida à violência?”
A questão proposta superpõe dois importantes problemas – o da violência e o da adolescência. Comecemos pela violência. Sempre que falamos sobre ela, a primeira coisa que fazemos é vê-la como um problema externo, que não nos diz respeito a não ser como eventuais vítimas inocentes. Jamais admitimos que nós mesmos possamos ser agentes produtores de violência.
Os violentos e agressivos são sempre os outros, nunca nós mesmos. Agimos de modo semelhante com a sexualidade. Estamos muito atentos e fazendo julgamentos sobre os comportamentos sexuais dos outros, como se nós mesmos não passássemos por vicissitudes semelhantes àquelas que tão severamente censuramos nos outros. Negamos e reprimimos nossos impulsos agressivos e sexuais. Até certo ponto isso é necessário.

Como Freud dizia, para vivermos em sociedade, não podemos dar plena vazão a nossos desejos sexuais e agressivos. Temos de controlá-los, caso contrário ficaria impossibilitada a convivência que com o outro. Mas esse controle não deve fazer com que neguemos a presença de tais fortes pulsões em nós mesmos e que as projetemos no outro, atribuindo-lhe com exclusividade aquilo que também possuímos. A projeção dos desejos agressivos e sexuais no outro, e sua concomitante negação em nós mesmos, é fonte de inesgotáveis desentendimentos entre os seres humanos. O ideal é que reconhecêssemos nossa constituição pulsional, que nos dota de sexualidade e agressividade, sendo tarefa de todos e de cada um a administração destas poderosas forças internas.
Assim, quando se fala da violência que atingiria o adolescente, tal afirmação pareceria colocá-lo como vítima indefesa e passiva, deixando de lado que a violência habita também o adolescente, pois ela nos habita a todos. Mas é verdade que os recursos internos para o manejo da violência diferem em função do nível de estruturação do psiquismo, estando ele ainda em processo de organização nas crianças e nos adolescentes. Falemos agora da adolescência. Ela é um período de extraordinária turbulência interna, no qual o corpo e o psiquismo sofrem amplas modificações. O adolescente deve deixar a vida infantil com todos seus valores e se defrontar com grandes desafios, especialmente aqueles ligados a sua personalidade, a sua identidade. O adolescente não é mais o filhinho de papai e mamãe, a quem deve obedecer sem discussão. Ele agora precisa se firmar como sujeito, deve definir sua sexualidade e descobrir a posição que vai ocupar no mundo dos adultos. O adolescente está exposto à violência interna de seus próprios desejos e conflitos, pois tanto sua sexualidade como sua agressividade adquirem aspectos e intensidades por ele até então desconhecidas. Seu complexo de Édipo ressurge com grande intensidade, deixando-o confuso e assustado ao constatar que agora poderia realizar suas velhas fantasias incestuosas inconscientes, coisa que seu corpo infantil impossibilitava. Da mesma forma, sua própria agressividade precisa ser modulada. O adolescente se depara com muitos desafios.

Como lidar com os modelos que a sociedade lhe oferece para seu sexo, sua posição social, seu futuro? Deve se conformar com eles? Precisa se rebelar contra eles? Para impor sua identidade, deverá lutar contra os pais. Mesmo quando estes estão do seu lado e se dispõem a ajudá-lo, ainda assim ele tem de se desprender deles. Ao mesmo tempo em que ele quer fazer isso e seguir seu próprio caminho, teme se afastar dos pais e perder o lugar protegido que eles lhe têm proporcionado. Frente a angústia que tudo isso lhe provoca, o adolescente pode reagir com grande agressividade, voltada para os outros ou contra si mesmo, em condutas auto destrutivas. As questões sobre a identidade sexual ocupam um lugar central para os adolescentes. Os rapazes confundem masculinidade com agressividade e se engajam em estrepitosas exibições machistas. As meninas engravidam como uma forma de provar que são mulheres, apesar de terem as informações objetivas necessárias que as poupariam dos problemas daí decorrentes. Ambos podem ser levados a praticar sexo não seguro, expondo-se a doenças sexualmente transmissíveis ou de gravidezes não planejadas. Aqueles que descobrem ter uma sexualidade diversa da maioria padecem grandes agonias. Ao se afastar do protegido grupo familiar, o adolescente necessita vitalmente se incluir em outros grupos, que o amparem em seus conflitos identitários. Nos novos grupos, deve aprender a lidar com os fortes mecanismos que regem seus funcionamentos, com as lideranças, as disputas de facções rivais que podem uni-los ou fragmentá-los, a eleição de bodes expiatórios, etc. Nestes grupos, a afirmação da masculinidade faz com que os comportamentos agressivos nos rapazes sejam supervalorizados, da mesma forma que o comportamento sedutor por parte das meninas, o que gera situações potencialmente perigosas. Tais são os percalços quase inevitáveis que o adolescente tem de atravessar em sua busca de uma nova identidade. Este tumulto interno deixa os adolescentes especialmente vulneráveis às drogas e ao álcool, que são ingeridos como calmantes, no intuito de aplacar o sofrimento que lhes provoca o crescimento, a perda da identidade infantil, o ter de enfrentar desafios que, naquele instante, podem parecer-lhes imensos e intransponíveis.

Até agora, falei da violência interna própria do momento psíquico da adolescência. Mas, é claro, aspectos sociais e culturais podem acolher e proteger o adolescente neste momento de confusão identitária e violentas descargas sexuais e agressivas, ou deixá-lo entregue a si mesmo, agravando suas dificuldades. De modo geral, para que a adolescência transcorra do melhor modo possível, desembocando numa organização estável da identidade, os pais deveriam ocupar adequadamente suas funções paterna e materna. Teóricos da psicanálise julgam que, nas ultimas décadas, tem havido um progressivo enfraquecimento da figura paterna. Isso se dá por inúmeros fatores – o abandono dos valores ligados ao patriarcado, as conquistas do feminismo, por exemplo - o que tem criado novas dificuldades no já crítico processo da adolescência. Além disso, nos últimos anos a família também tem sofrido grandes alterações. Ao invés do modelo tradicional, a prática difundida do divórcio faz com que as famílias reconstituídas sejam cada vez mais numerosas e isto certamente não ajuda a atenuar os conflitos desencadeados pela adolescência. Num país como o nosso, de profundos abismos socioeconômicos, com grandes parcelas da população segregadas em condições sub-humanas de vida, é claro que o tumulto próprio da adolescência encontra uma retaguarda social e familiar muito precária. Frequentemente lemos nos jornais noticias sobre “chacinas”, a forma consagrada pela imprensa para se referir aos freqüentes assassinatos em massa de adolescentes e jovens moradores de bairros pobres das grandes cidades. Habitualmente tais chacinas são atribuídas a lutas de gangues de traficantes de drogas, acertos de contas, ação de grupos policiais. A indiferença da sociedade frente a estes bárbaros assassinatos fica ainda mais chocante ao se contrastá-la com o alarde que é produzido pela morte de um único adolescente das classes mais abastadas, coisa que raramente ocorre. A adolescência é um período de grande violência interna e essa violência interna pode ser neutralizada ou potencializada pelo meio ambiente, pela familia, pela sociedade. No Terceiro Mundo, a desigualdade social é, em si, uma violência que recai sobre todos nós. Sendo os adolescentes mais frágeis e susceptíveis, não é de admirar que sejam por ela mais atingidos

Sérgio Telles
Psicanalista, psiquiatra e escritor. Membro do Departamento de Psicanálise do Sedes - SP
http://www.sergiotelles.com.br/






quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



Lacan: um convite a reflexão psicanalítica


Jacques-Marie Émile Lacan nasceu em Paris no dia 13 de abril de 1901 e faleceu em 9 de setembro de 1981. De família burguesa e educação extremamente católica, frequentou os melhores colégios, mas debateu-se com fundamentos católicos desde a adolescência seguindo assim por toda sua obra. Formado em medicina, passou da neurologia a psiquiatria e teve seu primeiro contato formal com a Psicanálise em 1951. A partir daí, passou a ocupar-se desta por toda vida, estando em frente à sua mesa de trabalho das 6 horas da manhã às 8 horas da noite. Leitor profundo da obra freudiana publicou sua primeira produção teórica (Escritos) de fato, somente em 1966.
De Lacan, como nos cita Colette Soler, “pintaram-se mil e um retratos contrastantes, sinal de uma transferência generalizada sobre sua pessoa”, mas o fato é que temos um teórico que em todo seu percurso empenhou-se em “denunciar” o quanto os pós-freudianos haviam se desviado da teoria original. Assim, Lacan propôs-se o “retorno à Freud” em busca do resgate da teoria freudiana. Para tal, utilizou-se da linguística, da antropologia e posteriormente da lógica e topologia, passando sempre seus ensinamentos, basicamente, de forma oral em aulas, seminários e conferências.
Marcou a Psicanálise com suas ideias consideradas por muitos como áridas e de difícil compreensão, além de transgressivas, uma vez que opunha-se às regras estabelecidas pela Associação Psicanalítica Internacional, especialmente no que diz respeito ao tempo das sessões e formação de analistas.
Estudar Lacan, de certa forma é retomar Freud, pois é nele que sua teoria encontra fundamentos e tem seu ponto de ancoragem, mesmo que isso não se apresente claramente num primeiro momento.
A reputação da obra lacaniana é de uma obra de difícil acesso, recheada de conceitos herméticos e até inacessíveis, porém, não podemos deixar de lembrar que é a partir de sua obra que derivaram importantes teorizações de pós lacanianos atuais e comuns hoje no estudo da Psicanálise e na prática psicanalítica: André Green, Jean Laplanche, Pontalis, Françoise Dolto, casal Mannoni, Piera Aulagnier entre outros.
Segundo Renato Mezan (Memória da Psicanálise, edição 8), “a psicanálise contemporânea parece viver um pluralismo de idéias” e sem dúvida, os alunos e discípulos de Lacan marcaram e marcam sua presença com novos desdobramentos teóricos, os quais abrem diferentes caminhos para o estudo do inconsciente. Em outras palavras, vários são os psicanalistas que endossam a proposta lacaniana de retorno à Freud e a realizam cada um a seu modo, avançando nas pesquisa de seus antecessores, muitas vezes de forma até mais consistente que seus mestres.
Lacan, que nos anos 70 muitas vezes foi visto como contestador, cada vez mais é estudado em diferentes Instituições. Do estudo crítico do esboço de sua vida às etapas de sua obra que vão desde o simbólico, a linguagem, ao real e sua tentativa de capturá-lo através da topologia e dos nós borromeanos podemos extrair as conseqüências na prática psicanalítica.
Estudar Lacan é estudar paralelamente Freud, além de ser um convite a reflexão psicanalítica da Escola Francesa e de todos seus desdobramentos na atualidade.

SILVIA COARI
Psicanalista convidada do TRIEP para a coordenação do curso Iniciação ao Pensamento de Jacques Lacan.