Corpos despedaçados*
Por Sérgio Telles**
O assassinato do herdeiro do grupo Yoki Marcos
Matsunaga por sua mulher Elize tem vários elementos que ressoam no imaginário
coletivo. Em primeiro lugar, o fato de ter sido ela uma prostituta
"salva" pelo cliente que com ela se casou. Esse é um forte estereótipo
fantasmático da vida amorosa, a ponto de Freud ter-lhe dedicado um trabalho
escrito em 1910 e ainda perfeitamente atual, pois as verdades do psiquismo não
caducam. Em Um Tipo Especial de Escolha de Objeto Feita pelos Homens, Freud
mostra como as imagens da prostituta e da mãe podem fundir-se em função das
vicissitudes do Complexo de Édipo. Mas o mais impactante no caso é o
esquartejamento que Elize praticou depois de matar o marido. Para muitos, um
ato mais violento do que o próprio assassinato, pois evidencia a presença de um
ódio desmesurado que não se contenta em tirar a vida do desafeto e precisa ir
mais além, destruindo-lhe o corpo.
O comportamento individual de Elize dá continuidade a uma
prática social comandada pela nobreza medieval europeia, que de forma
semelhante punia os crimes de "alta traição", aqueles que afrontavam
o rei e os símbolos de sua majestade. O criminoso era então condenado à pena de
enforcamento, evisceração e esquartejamento, nisso se acrescentando muitas
vezes a trituração de ossos, a castração e a decapitação. Em algumas ocasiões,
o enforcamento podia ser interrompido antes da morte do condenado para que ele,
ainda vivo, sofresse as dores da evisceração e castração. Seu coração e as
vísceras eram imediatamente queimados numa fogueira preparada para esse fim,
pois se acreditava que ali residiam sua corrupção e maldade. A castração o
privava dos símbolos de poder e da procriação. Ao decapitá-lo, expressamente
puniam-se suas loucas ideias de enfrentar o rei. Os pedaços do corpo eram
expostos em locais de grande afluência. Com essa execução espetacular, de
máxima visibilidade pública, o poder reafirmava de forma exemplar sua força e
admoestava para o risco de a ele se contrapor.
A carga simbólica maior decorria da crença religiosa. Com mais
convicção do que hoje, acreditava-se que no Juízo Final a alma voltaria a
habitar os corpos que então ressuscitariam. Daí a importância da integridade do
corpo. Ao destruí-lo, o poder eliminava física e espiritualmente o condenado,
ou seja, neste e no outro mundo, impossibilitava seu ingresso na vida eterna e
era essa a maior punição imaginável.
Em Portugal, o suplício judiciário foi usado também na
Inquisição e aplicado a nosso herói da Inconfidência Mineira, o Tiradentes.
Não tão remotamente, procedimento semelhante foi aplicado aqui,
no Brasil, com os corpos de Lampião e seu bando, cujas cabeças decapitadas
ficaram expostas no Museu Nina Ribeiro de Salvador até 1969.
Algo semelhante continua ocorrendo atualmente no México, em
função da guerra entre os cartéis do narcotráfico, na disputa pelo mercado da
droga. Em Ciudad Juarez - onde se digladiam o grupo La Línea, que
tradicionalmente controlava o tráfico na região, e o cartel de Sinaloa,
chefiado por Joaquín Guzmán ("El Chapo") -, frequentemente são
encontrados corpos esquartejados, desmembrados, decapitados, desfigurados pelo
ácido. Exatamente como faziam os reis europeus e com os mesmos objetivos, os
barões da droga querem com isso intimidar os inimigos, proclamando um poder
ilimitado e inquestionável, capaz de eliminar qualquer um que ouse desafiá-lo.
A única diferença é que antigamente essas execuções ritualísticas eram acontecimentos
únicos, excepcionais, realizados com muita pompa em grandes encenações. No
México de hoje, são acontecimentos rotineiros, banalizados, frente aos quais a
população se anestesia para conseguir sobreviver.
Jonathan Littell é autor de As Benevolentes (Objetiva
/Alfaguara), livro lançado em 2006 e vencedor dos Prêmios da Academia Francesa
e Goncourt. O título remete ao mito grego das Erínias ou Fúrias, que perseguiam
Orestes por ter ele assassinato sua mãe Clitemnestra, e o livro trata do
nazismo através de seu personagem principal, um aristocrático oficial da SS.
Littell publicou agora na London Review of Books (7/6/2012) o texto Lost in the
Void, um assustador relato sobre a situação caótica de Ciudad Juarez,
totalmente controlada pelo narcotráfico. Ao falar dos assassinatos
sistemáticos, diz que a forma pela qual os corpos sofreram mutilações revela
uma semiologia conhecida por todos. Se o corpo vem sem sapatos, é porque o
falecido foi expulso do cartel. Se vem com as mãos decepadas e colocadas no
bolso, é indício de que foi punido por ter roubado o cartel. Se tem um dedo
cortado e enfiado na boca ou no ânus, é por ter denunciado alguém à polícia. Se
aparece com a pele do rosto arrancada ("como casca de banana", diz
ele), é sinal que foi considerado traidor do grupo.
O que ligaria a ex-garota de programa paranaense, os reis
medievais da Europa e os atuais barões da droga na fronteira mexicana é o
exercício do ódio, a destruição do corpo do objeto execrado. Compartilham uma
vingança onipotente contra uma insuportável ofensa ao narcisismo, esteja este
amparado institucionalmente ou não. A exibição do corpo esquartejado,
desmembrado, dissolvido no ácido é uma demonstração intimidadora do poder
absoluto, esteja ele dentro ou fora da lei. Mas Elize, ao contrário dos reis e
dos narcotraficantes, não quer exibir o corpo esquartejado, quer escondê-lo. De
fato, aí aparece uma diferença entre as três situações, relacionada com o
exercício efetivo do poder. Ao sofrer a ofensa narcísica (a rejeição do
marido), Elize onipotentemente se vinga, matando-o e desconstruindo seu corpo.
Mas ela não perdeu o contato com a realidade, sabe que, se descoberta, sofrerá
as consequências de seu ato. Daí precisar esconder o corpo, ao contrário dos
outros dois exemplos, que, por terem grande poder (legítimo ou não) e até mesmo
para reafirmá-lo, podem exibir abertamente a vingança.
Sejam quais forem as motivações e justificativas conscientes
para realizar o esquartejamento do corpo do morto (razões de Estado,
intimidações por parte de mafiosos, eliminação de provas incriminadoras), penso
que deve sempre existir um substrato inconsciente muito primitivo, algo próximo
do canibalismo, sobre o qual falamos aqui recentemente. No canibalismo
predomina a ambivalência, o ódio faz matar o objeto e destruir seu corpo, o
amor quer preservá-lo e com esse objetivo o ingere. Nas execuções e nos
assassinatos como o realizado por Elize, predomina o ódio. O objeto é morto, o
corpo é destruído e abandonado como detrito despojado de toda humanidade, mera
evidência do poder daquele que o destruiu.
*artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo - 23/06/12.
**psicanalista e escritor.