segunda-feira, 28 de julho de 2014



Chamada inadvertidamente de recalque, a inveja vem sendo amplamente citada entre a grande maioria das letras do funk ostentação que faz a cabeça dos jovens, inclusive entre seus representantes do sexo feminino. Os artistas valorizam o exibicionismo e o consumo excessivo de um lado e o deslumbramento com o acesso aos bens materiais, a posse e a acumulação do outro. Os hits possuem letras de provocação a outras mulheres e são acompanhados de videoclipes que invariavelmente seguem a mesma fórmula: bebidas caras, mulheres exuberantes pouco vestidas, mansões suntuosas, carros luxuosos, motos possantes, brilho e ouro, muito ouro, por sinal. São verdadeiros hinos em nome do deboche – um recado bem irônico e direto para as “recalcadas e invejosas de plantão” – e tem feito muito sucesso, seja nos bailes funks da periferia ou dos bairros nobres, onde os mais empolgados “se jogam” sem maiores pudores na coreografia, por sinal, contagiante.

Pensando nisso, recorri a uma antiga elaboração escrita por mim realizada durante o curso de formação em psicanálise no TRIEP para lançar alguma luz sobre a ótica da inveja presente na histeria.

Para a Psicanálise, a inveja é um traço de caráter da histeria. O objetivo da inveja não é querer aquilo que o outro tem, mas sim querer que o outro não tenha aquilo que já tem, e que supõe dar-lhe completude. Seu alvo é um objeto parcial, um atributo desejável - poder, autonomia, brilho do outro etc. -, e não a pessoa em si. O atributo desejável é um simbolismo da possibilidade de algo ser separado do corpo, tirar do outro aquilo que o invejoso não tem – uma suposta “felicidade”.  
Podemos afirmar, portanto, que os conflitos histéricos são fantasias inconscientes a espera da escuta psicanalítica. A fantasia na neurose histérica é a incapacidade para a satisfação real de um desejo sexual e é nela que as histéricas encontram sua satisfação e reconhecem em si um enigma. A histeria é um excesso fantasmático, um desejo intenso que, se não tem destino, produz adoecimento.
O olhar da histérica é um olhar invejoso. Freud fala da inveja como o afeto presente no desenvolvimento sexual feminino, isto é, a inveja é o “sentimento particular da falta”. Quando menina, ela julgou e decidiu imediatamente: viu isso, sabe que não o tem, e quer tê-lo. Portanto, a inveja do pênis é o processo que deriva do complexo de castração nas histéricas. A inveja é uma verdadeira luta da suposta onipotência infantil perdida. A mulher histérica precisa ver o que as outras mulheres têm para supostamente responder ao seu maior enigma: eu sou mulher? Ela não compreende o que lhe falta e o porquê de não ter sido “aparelhada”. Vê o horror de deduzir a falta, da ordem da castração e questiona sua incompreensão.
           
Concluindo: toda essa cultura exagerada da inveja não é culpa do funk ostentação. Também não considero ruim que as pessoas sonhem em ter uma vida melhor ou até mesmo que almejem a prosperidade. Como já dito, a inveja transita rumo ao desejo. Para a histérica, existe apenas um atributo, e não dois, cuja posse por uma priva a outra “recalcada” automaticamente da possibilidade de possuí-lo. Ao lado da inveja fica uma figuração de tempo: a mulher intui que não tem pênis, mas poderá tê-lo ou ter um equivalente dele. A histérica tem sua vida conturbada pela angústia deste desejo inconsciente que encontrará apenas a satisfação parcial. Há uma intensa hostilidade dirigida àquelas que possuem tantos privilégios e apresenta-se o desejo de arrancá-los de tais possuidoras. A lógica binária da castração opera com um “sim” e com um “não”, ou seja, ter ou não o pênis, ou mais amplamente, ter ou não o atributo valorizado e invejado pela “recalcada”. Citando São Tomás de Aquino: 
Invidia est tristitia de alienis bonis : a inveja é a tristeza quanto às coisas boas de outrem.”
O resto é “recalque”… Então, rala!

Cíntia Visnardi Rodrigues
Psicanalista. Membro do TRIEP. Graduada em Letras