Chamada inadvertidamente de recalque, a inveja vem
sendo amplamente citada entre a grande maioria das letras do funk ostentação
que faz a cabeça dos jovens, inclusive entre seus representantes do sexo
feminino. Os artistas valorizam o
exibicionismo e o consumo excessivo de um lado e o deslumbramento com o acesso
aos bens materiais, a posse e a acumulação do outro. Os hits possuem letras de provocação a outras mulheres e são acompanhados de
videoclipes que invariavelmente seguem a mesma fórmula: bebidas caras, mulheres
exuberantes pouco vestidas, mansões suntuosas, carros luxuosos, motos
possantes, brilho e ouro, muito ouro, por sinal. São
verdadeiros hinos em nome do deboche – um recado bem irônico e direto para as
“recalcadas e invejosas de plantão” – e tem feito muito sucesso, seja nos
bailes funks da periferia ou dos bairros nobres, onde os mais empolgados “se
jogam” sem maiores pudores na coreografia, por sinal, contagiante.
Pensando nisso, recorri a uma antiga elaboração
escrita por mim realizada durante o curso de formação em psicanálise no TRIEP
para lançar alguma luz sobre a ótica da inveja presente na histeria.
Para a Psicanálise, a inveja é um traço de caráter da histeria. O
objetivo da inveja não é querer aquilo que o outro
tem, mas sim querer que o outro não tenha aquilo que já tem, e que supõe
dar-lhe completude. Seu alvo é um objeto parcial, um atributo desejável - poder,
autonomia, brilho do outro etc. -, e não a pessoa em si. O atributo desejável é
um simbolismo da possibilidade de algo ser separado do corpo, tirar do outro
aquilo que o invejoso não tem – uma suposta “felicidade”.
Podemos afirmar, portanto, que os conflitos
histéricos são fantasias inconscientes a espera da escuta psicanalítica. A
fantasia na neurose histérica é a incapacidade para a satisfação real de um
desejo sexual e é nela que as histéricas encontram sua satisfação e reconhecem
em si um enigma. A histeria é um excesso fantasmático, um desejo intenso que,
se não tem destino, produz adoecimento.
O olhar da histérica é um olhar invejoso. Freud
fala da inveja como o afeto presente no desenvolvimento sexual feminino, isto
é, a inveja é o “sentimento particular da falta”. Quando menina, ela julgou e
decidiu imediatamente: viu isso, sabe que não o tem, e quer tê-lo. Portanto, a
inveja do pênis é o processo que deriva do complexo de castração nas
histéricas. A inveja é uma verdadeira luta da suposta onipotência infantil perdida.
A mulher histérica precisa ver o que as outras mulheres têm para supostamente
responder ao seu maior enigma: eu sou mulher? Ela não compreende o que lhe
falta e o porquê de não ter sido “aparelhada”. Vê o horror de deduzir a falta,
da ordem da castração e questiona sua incompreensão.
Concluindo: toda essa cultura exagerada da inveja
não é culpa do funk ostentação. Também não
considero ruim que as pessoas sonhem em ter uma vida melhor ou até mesmo que
almejem a prosperidade. Como já dito, a inveja transita rumo ao desejo. Para a
histérica, existe apenas um atributo, e não dois, cuja posse por uma priva a
outra “recalcada” automaticamente da possibilidade de possuí-lo. Ao lado da
inveja fica uma figuração de tempo: a mulher intui que não tem pênis, mas
poderá tê-lo ou ter um equivalente dele. A histérica tem sua vida conturbada
pela angústia deste desejo inconsciente que encontrará apenas a satisfação
parcial. Há uma intensa hostilidade dirigida àquelas que possuem tantos
privilégios e apresenta-se o desejo de arrancá-los de tais possuidoras. A
lógica binária da castração opera com um “sim” e com um “não”, ou seja, ter ou
não o pênis, ou mais amplamente, ter ou não o atributo valorizado e invejado
pela “recalcada”. Citando São Tomás de Aquino:
“Invidia est
tristitia de alienis bonis : a inveja é a tristeza quanto às coisas boas de outrem.”
O
resto é “recalque”… Então, rala!
Cíntia
Visnardi Rodrigues
Psicanalista. Membro do TRIEP. Graduada em Letras