sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Atendimento Infantil: um campo singular

Trabalhar ou se debruçar sobre as questões do infantil, com todos seus paradoxos, de alguma forma sempre nos põe frente a várias questões. São vários os autores que na história da psicanálise de crianças se viram frente a variados impasses que até hoje não foram superados ou ainda não atingiram um estatuto conceitual.
Freud, já constatava que o entendimento da criança sustenta dificuldades para a análise, o que é muito bem citado por Ângela Vorcaro:
Freud abordou a dificuldade implicada no estatuto da criança... não apenas ao dizer que a observação de crianças não responde pelo infantil e origina mal entendidos, mas ao dizer também que a observação da vida anímica infantil é uma tarefa difícil, que a criança ensinou-lhe coisas para as quais não estava preparado, que poderia estar muito idoso para ter paciência com elas; paciência inclusive para escrever sobre elas. Buscou reparar esse descuido na delegação de sua tarefa à sua criança, a Anna Freud, que representava então o futuro da psicanálise”.
Quantos desafios que a clínica infantil nos traz...
Gostaria aqui de considerar a clínica com crianças, apoiada em alguns conceitos lacanianos e em alguns textos de autores de sua escola. Talvez pensar em Lacan e psicanálise de crianças num primeiro momento pareça não coincidir, porém segundo Pierre Kaufmann:
“...é por certo na obra de Lacan que encontramos os elementos de uma reorganização apoiada numa base estrutural de dados referentes ao fundamento do psiquismo infantil na experiência analítica.”
Várias são as questões que poderíamos abordar. Por ora, porém, uma questão que sempre me intriga, é que normalmente a criança nos chega ao consultório, vinda pelas mãos e demanda de seus pais. Apresenta os mais variados sintomas, os quais os pais relatam muito bem na maioria das vezes. Mas, seriam de fato sintomas? Seriam sentidos pela criança como queixa? São questões importantes, pois daí deriva grande parte da nossa conduta como analistas.
A princípio, sabemos que nos cabe acolher esses pais e também essa criança por eles trazida. Mas, o que seria acolhê-la? Seria tomar um lugar de função parental, de cuidados? Ou um lugar parecido com o de uma professora que aborda a função pedagógica? E ainda, seria favorecer nosso paciente a se inscrever no que lhe é esperado, no que os pais esperam dele, amarrado unicamente à adequação social? Essas questões são amplas e complexas, pois se como dissemos anteriormente, a criança nos chega via pais, os seus sintomas também são vistos por esses pais, e portanto sua gravidade e até quem sabe - sua existência, são diretamente relacionados ao olhar e à subjetividade destes. A singularidade de cada criança vai surgindo de acordo também com a capacidade e possibilidades que ela encontra de manifestação de suas necessidades. Os pais, não são completos para os filhos, não podem lhes dar a satisfação total (ainda bem!), então sempre sobrarão restos, possibilidades de busca, faltas que determinarão a constituição desse sujeito.
O sujeito que trato aqui, é a criança, um ser em formação do psiquismo e que busca no outro, especialmente nas figuras parentais as respostas para suas inquietudes e necessidades.
O analista não pode unicamente se apresentar como substituto desses pais ou como detentor de um saber que será impresso na criança, ato bem desempenhado muitas vezes pelos professores, educadores, mas não pelo analista. Pelo contrário, na observação de crianças por exemplo, o analista deveria observar as possibilidades que a criança traz, esta criança, sem incutir-lhe sentidos ou pior, interpretar segundo seus ideais culturais, o que fatalmente conduziriam a um suposto trabalho analítico a serviço da chamada “boa educação”. Os desejos do analista não devem entrar na terapia de crianças. Sua ação contratransferencial, seu querer cuidar, seus próprios aspectos infantis acabam levando-o muitas vezes a incutir sentidos à criança, desviando o atendimento por caminhos de sua própria subjetividade (a do analista). Um caminho que deve ser trilhado na análise pessoal do analista e não pelas “linhas tortas” do atendimento da criança.
Se para Lacan, a análise deve levar o sujeito ao encontro com o id, com suas pulsões, a análise de crianças não deve ser diferente. Deve também caminhar para que a criança possa ir a busca de suas pulsões e desejos, sair em parte da posição que os pais lhe determinam e dos sintomas nos quais a vêem ou a colocam. Deslocar-se então de uma posição alienante que o Outro a insere e assumir um papel ativo, fazendo um Real ao invés de sofrê-lo.
Pensemos seriamente que o atendimento de crianças deve ser um campo singular, campo onde a criança encontre a possibilidade de construção da sua própria alteralidade. Qualquer tipo de maternagem, didática ou “coluio” com os pais somente leva a um empobrecimento da Psicanálise.
Silvia Coari