segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Se persistirem os sintomas, consulte um psicanalista*


Numa sociedade em que o cidadão é monitorado por "olhos eletrônicos", faróis inteligentes, câmeras digitais, numa constante sensação de paranóia implícita, o resultado não pode ser dos melhores.
Quando a vida pessoal se transforma num inferno particular, o mal-estar crônico adquire novas formas sintomáticas e a ansiedade toma conta.
Neste momento, o que se recomenda é procurar ajuda profissional. Se for um médico ou psiquiatra, a terapia medicamentosa estará ao alcance das mãos, mas se a opção fosse um psicanalista, a terapia baseada na palavra faria o sujeito falar do seu sofrimento.
A prática clínica consiste em fazer o paciente contar sobre quem ele pensa que é e como ele se apresenta para si e para quem o escuta. Como enfatizava Jacques Lacan, o analista age menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é.
Significa que este exerce essa função somente quando houver alguém que lhe demande neste lugar. Entre quatro paredes e um divã, o analista se pergunta: O que ele quer de mim? A cura ou o apego ao sintoma? Quem ele pensa que sou, quando diz isso?
Em outras palavras, o analista funciona como arrimo das representações inconscientes com as quais o paciente dialoga e lida sem saber ao certo que isso acontece na transferência. A associação livre, regra fundamental do tratamento, opera mudanças quando o discurso faz um novo sentido, redefinindo o modo de escutar a própria história.
Quem não deseja falar de si para alguém? Ainda mais, quando as relações são vividas como superficiais, passageiras e vazias. Na era da comunicação móvel, o diálogo não é mais dialógico, é atravessado pelas lentes das tecnologias digitais criando uma profusão de sentidos díspares.
Para os mais jovens, as novas mídias e as redes sociais digitais (facebook, twitter, blogs) são fatos consumados: por meio destas tecnologias que a vida rola solta.
Alguns analistas acompanham a tendência e postam páginas no facebook, enquanto outros são seguidos no twitter ou nos blogs inteligentes e criativos sobre temas do cotidiano.
Estes eventos demonstram que a sociabilidade em rede, onde o virtual e o real são vivenciados como sendo a mesma coisa, chegou para ficar e apresenta dinâmicas nunca antes cogitadas, enquanto a energia se sustentar, pois na falta dá-se o caos.
Algumas situações que ocorrem hoje em sessões de análise confirmam como a cultura digital faz parte da produção do inconsciente.
Os analisantes se valem do torpedo para mandar mensagens ao psicanalista como: "estou a caminho", "desculpe, mas não poderei ir", "podemos mudar a sessão?" ou, quando não desligam o celular e dizem: "desculpe, mas preciso atender" ou "vou desligar o aparelho".
Outro fenômeno interessante é quando o paciente, para ser o mais fiel em seu discurso, lê o que o outro lhe escreveu no celular.
Sob esta perspectiva, as linguagens apresentadas sob os diferentes suportes - tablets, smartphones, laptops - compõem um aspecto da transferência de saber que a psicanálise atual deve conhecer e manejar.
Segundo a semioticista Lucia Santaella, "estamos vivendo a transição entre um modelo de acesso restrito à informação para um modelo aberto e livre, no qual a informação se espalha por todas as superfícies e ambientes".
Com essa constatação, fica-se mais exposto ao meio; porém, isto poderia prejudicar as análises? Ou, quanto mais o psicanalista parecer como um de nós, menor seria a idealização que gira em torno dele?
No passado, havia uma idéia de que o paciente não podia ter acesso à vida privada do analista, ao ponto de se produzir enormes resistências ao tratamento, se algo fosse revelado da sua intimidade.
O constrangimento maior era encontrá-lo em ambientes comuns e não saber o que fazer: cumprimentar, ignorar ou se esconder. Naquelas épocas, as análises eram restritas apenas à elite que podia pagar por elas, e os profissionais, todos de formação médica.
Tudo isso mudou! Hoje, os psicanalistas são psicólogos em grande maioria, e a psicanálise tornou-se conhecida e mais acessível. Desperta curiosidade, desejo de conhecer e experimentar; é assunto freqüente, tanto na mídia, quanto nas pesquisas acadêmicas.
Em público, diversos analistas emitem opiniões, participam de entrevistas e debates sobre temas da própria práxis.
Apesar de tantas informações, as pessoas têm dificuldade de diferenciar psicoterapeuta, psicólogo, psicanalista e psiquiatra, ainda que se tenha confiança de serem profissionais que cuidam da "cabeça", da "mente", do "subconsciente", do "psicológico" e do "comportamento".
As pessoas chegam aos consultórios com pesquisas feitas no Google sobre o remédio que estão tomando ou sobre o sintoma favorito, resultando em informações fragmentadas sobre a matéria. Não são poucas as medicadas indiscriminadamente; mais por médicos generalistas do que por psiquiatras.
Com notável sucesso de vendas e com o aumento de usuários das "tarjas prestas", o perfil do consumidor interessou as agências de publicidade, com os remédios apresentados na propaganda como produtos de primeira necessidade.
Não é para menos, quem ficou dependente de ansiolíticos e/ou antidepressivos, para poder se livrar deles, precisa tomar outra pílula que anula o efeito da anterior, e assim por diante.
É preciso um coquetel de pílulas para um coquetel de sintomas, deixando como rastro o insone que erra nas noites mal dormidas. Quem já passou por isso se reconhece quando alguém diz, ao chegar ao trabalho: "Cara, não agüentei e tomei um Dramin, e agora não consigo parar em pé".
A ausência de sono que afeta tanta gente, seja esta breve ou prolongada, é de tirar do sério. Para muitos, o uso constante das gotas de Rivotríl é mais eficaz do que contar carneirinhos. Pois é: até para nanar, é preciso se dopar!
Localizado no sono REM, o sonho é suprimido pela ação da droga, e não há nada menos salutar do que deixar de sonhar, sem lembrar nada para contar. Perde-se uma parte de si, um detalhe do mundo anímico que faz coro com o autoconhecimento e a dimensão subjetiva do desejo.
O inconsciente, patrimônio freudiano, nada tem a ver com o sistema nervoso central ou periférico. Mas, quando não podemos evitar que algumas fórmulas de compromisso caduquem com o passar do tempo, inviabilizando a felicidade e a tranqüilidade, talvez seja o momento exato para começar uma análise.
Os seres humanos são complicados, melhor dizendo, complexos. Soltos no mundo, desde crianças, temos de responder, como adultos, aos desafios da vida, antes reais do que virtuais. E o fato de sermos falantes, sexuados e mortais, isso não tem remédio. Independente dos meios eletrônicos, a cura pela palavra mantém seu prestígio, com mais de um século de sucesso em cartaz.

FANI HISGAIL
Psicanalista e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e autora do livro "Pedofilia, Um Estudo Psicanalítico" (Ed. Iluminuras, 2007).


*artigo publicado no jornal Fôlha de São Paulo - Caderno Equilíbrio e Saúde de 27/09/11

sexta-feira, 10 de junho de 2011

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O valor da amizade*

A amizade não é um fenômeno recente, assim como não são recentes suas diferentes formas de manifestação. Desde a antiguidade, ela podia ser definida como um laço que unia as virtudes entre duas pessoas, mas também havia amizades fundadas em interesses ou na possibilidade de algum usufruto, o que Aristóteles chamava de "amizades políticas".
Em nossos dias temos amizades "estendidas, amizades virtuais": são "amigos" em comunidades virtuais que compartilham um mesmo gosto, uma mesma reivindicação, um mesmo desgosto... Há aqueles que seguimos em seu dia-a-dia, a qualquer click, e dos quais nos dizemos amigos. Há amigos de amigos que também são acrescentados, ou melhor, adicionados à lista de amigos nas páginas pessoais. Quanto mais amigos, melhor! E para cada um, isto vai se estabelecer como um indicativo: o mais popular, o mais querido, o mais articulado... Enfim, há uma infinidade de maneiras de se vincular e chamar de amigo. São novas definições, mas fato é que a amizade sempre representou e representa uma necessidade humana de estar com o outro.
Freud pensou também sobre este tema e analisou suas amizades e inimizades em períodos que considerava significativos. Para ele, "um amigo íntimo e um inimigo odiado sempre foram requisitos necessários de sua vida emocional". E em outro momento, acrescentou que, tanto o amigo íntimo quanto o inimigo odiado se reuniam na mesma pessoa...
O que é este sentimento que, por um motivo ou outro, aproxima as pessoas e as faz se tornarem amigas? Como todas as marcas psíquicas que nos acompanham no decorrer da vida, as marcas referentes ao signo da amizade também encontram sua origem nos primeiros laços amorosos estabelecidos na infância.
No que se refere ao amor, a criança vai aos poucos se dando conta de que não é, para a mãe, tudo o que a preenche e satisfaz. A mãe possui outros amores: o marido, outros filhos, o trabalho, os cuidados consigo mesma... Quebra-se a certeza, quase onipotente da criança, de que ela possuía da mãe um voto de amor exclusivo, de que ela era "seu mundo inteiro". Instala-se a partir de então, um sentimento de decepção, a primeira marca de decepção da qual a criança tem notícia e a partir da qual estarão marcadas suas experiências posteriores. Seu amor (pela mãe) não foi correspondido da forma que a criança desejou.
A amizade entraria neste cenário, como um substituto deste amor não correspondido. Daí sua exigência será a de reciprocidade, de correspondência. Neste sentido, a psicanalista Danièle Brun comenta que esta exigência de reciprocidade em relação à amizade é o que a diferencia do amor. Afinal, podemos amar sem sermos amados, mas "não há como ser amigo de alguém que se recusa a sê-lo".
A amizade também exige investimento no outro e é uma exigência da vida psíquica. Fora do círculo familiar, vamos buscar outros vínculos, estabelecer relações em que se possam partilhar problemas e, em alguns momentos, até mesmo a solidão; vamos fazer outras escolhas, inventar um mundo novo, apesar dos percalços, traições e decepções que elas possam acarretar.
A exigência de reciprocidade na amizade é, em outras palavras, uma tentativa de, ilusoriamente, nos garantir de que o amor investido não estará de novo perdido ou que, pelo menos, possa ser reencontrado/reinvestido, num outro laço, num novo amigo. Assim, a amizade é um vínculo complexo e sofisticado, e é própria de seres humanos com capacidade de empatia e personalidade equilibrada. Os psicopatas, os perversos, os insuficientemente maduros não sabem sustentar uma amizade verdadeira. Ou seja, amigo, mas amigo mesmo, tem a ver com qualidade e nada a ver com quantidade.

Leila Cristina dos Santos Veratti
Psicanalista
*texto publicado no Jornal de Jundiaí - Caderno Estilo - de 06/02/11


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A vida por uma corda


As cenas dramáticas do resgate da Sra. Ilair, (veja http://www.youtube.com/watch?v=G1n7hvM3i2A ) moradora de São José do Vale do Rio Preto, na Região Serrana do Rio de Janeiro, no último dia 12/01, sensibilizou a todos e “correu” o mundo. Impossível, a partir dessas cenas, não pensar na incrível pulsão de vida desta mulher que apesar da idade, de ser fumante desde os nove anos, de nunca ter realizado nenhum tipo de nó em corda, se agarrou a única chance de viver.
Viver é perigoso, mas a esperança é um princípio vital. Agarrada a corda, Ilair intensamente esperançosa, recusou o domínio da realidade e sonhou com mais e melhor.

Sonho aqui não significa devaneio inútil ou delírio; mas o lugar do desejado, ansiado, querido. Pois, podemos compreender a esperança como produtora de futuro e aniquiladora da dureza de existir.
Porém, para alimentar a esperança é preciso do cuidar. O cuidar está na origem do ser humano e não é apenas um começo temporal. O cuidar é o que dá forma a criatura humana, que é corpo e espírito, e se torna responsável por ela enquanto viver. É o cuidado que humaniza e dá o contorno humano.
O psicanalista americano Rollo May comentando a civilização moderna, disse: “Nossa situação é a seguinte: na atual confusão de episódios racionalistas e técnicos perdemos de vista e nos despreocupamos do ser humano; precisamos agora voltar humildemente ao simples cuidado...”
Na Austrália choveu muito mais que na Região Serrana do Rio de Janeiro, mas lá diferente daqui faleceram somente dezenove pessoas contra mais de seiscentos dos nossos. Porque lá, diferentemente daqui, se dá maior centralidade ao cuidado do ser humano. E isso fez toda essa diferença!
Dar centralidade ao cuidado significa renunciar. Renunciar a vontade de poder que reduz tudo a objetos; impor limites à obsessão pela ganância a qualquer custo; colocar o interesse coletivo da sociedade acima do eu – narcísico...
Em nossa sociedade capitalista, competitiva, na qual a frieza perpassa as relações humanas, não é de estranhar que o modo de entender o cuidado tenha ficado reduzido ao cuidado com o corpo, negando a dimensão do eu e o outro. Não se entende o cuidado como atenção e reconhecimento das necessidades – próprias e do outro – e não se dá a devida importância no compartilhar essas necessidades para que possam ser percebidas. Não se trata de incentivar a compreensão entre as pessoas, mas combater a indiferença diante do sofrimento alheio.

Nossa sociedade está enferma. Produz má qualidade de vida para todos, seres humanos e demais seres da natureza.
Vivemos em concentrações urbanas com inacreditável densidade populacional e ao mesmo tempo nos sentimos sozinhos. O termo solidariedade vem de “solidez”, daquilo que consolida e dá firmeza à vida coletiva, enquanto solidão está atada a ideia de ser e ou estar “por si mesmo”, em isolamento. Não seria a solidão isolante sintoma do narcisismo inesgotável?
A Sra. Ilair disse em entrevista a um canal de televisão que “pediu aos vizinhos que não a deixassem morrer” e que “queria viver para cuidar de seus filhos”.



E você, que vida quer viver? Como cuida de si mesmo e dos outros?



Daisy Maria Ramos Lino
Psicanalista e analista institucional



*texto publicado no Jornal de Jundiaí - Caderno Estilo - de 23/01/11