Divã: o de Procusto e o da Psicanálise*
Por Leila Cristina dos Santos Veratti**
A atemporalidade da
narrativa dos mitos e lendas nos ajuda, mais uma vez, a compreender, pensar e
ilustrar nossa história, enquanto indivíduos e enquanto sociedade.
Na região da antiga
Grécia, em Ática, na estrada de Elêusis, vivia um criminoso bastante conhecido
pelos métodos que infligia às vítimas que atacava. Com o intuito de assaltar
aqueles que transitavam pelas estradas em que exercia sua “arte ilícita”, Procusto
(como ficou conhecido) oferecia aos viajantes sua “hospitalidade”.
A eles, oferecia
para o descanso, um divã – uma cama de ferro com a justa medida de seu próprio
corpo. Quando o viajante adormecia, Procusto dava início ao suplício: se o
viajante fosse maior, partes de seu corpo lhe eram cortadas, os pés ou a
cabeça, para “facilitar” a adequação. E se o viajante fosse menor, seu corpo
era esticado a fim de caber no espaço a ele designado. Procusto usava a si
mesmo como “a medida única para todas as coisas”. A isso chamava justiça... Sua
aparente benevolência era um atrativo para as vítimas que, mais cedo ou mais
tarde, para mais ou para menos, pagavam com seu próprio corpo.
Talvez Procusto
tenha sido, ainda que em termos mitológicos, um dos primeiros normatizadores de
que se tem notícia. A lenda nos ajuda a compreender questões relativas à
dificuldade em lidar com aquilo que escapa ao que é esperado como normal,
padrão, comum, com aquilo que é diferente e foge a uma conhecida e determinada
curva de normalidade ou de normatização do sujeito...
O divã da psicanálise
é bastante distinto do divã de Procusto. E está relacionado com a essência do
saber psicanalítico que, desde suas construções iniciais, refere-se a uma
espécie de crítica a qualquer tentativa de normalização, pedagogização e
condicionamento, buscando compreender o que está para além ou aquém destas
fronteiras e que diz respeito à subjetividade em sua pluralidade.
O divã de Freud, um
mobiliário azul com várias almofadas e um tapete aos pés, para que o paciente
pudesse se aquecer e se aconchegar, foi presente de uma de suas pacientes,
Madame Benvenisti (que após o término do tratamento, estava muito grata a Freud
e quis concretizar esta gratidão, presenteando-o).
A partir de então,
o divã passou a fazer parte do cenário psicanalítico como um convite ao
paciente para que, deitado, em contato mínimo com estímulos que possam
“distraí-lo de si mesmo” e sem a interferência do olhar do analista, ele possa
entregar-se à sua própria história e ajustar-se a um lugar (psíquico) que é
somente seu.
É este um dos
objetivos da psicanálise que, como ferramenta de interlocução, possibilita que
“o sujeito torne-se não conforme a norma, mas segundo ele mesmo” (Mannoni,
1991). E não em conformidade com algo que lhe é imposto de fora para dentro,
mas de acordo com aquilo que ele se dá a conhecer de si mesmo, do que a cada um
é possível fazer-saber de si.
Assim, podemos
dizer que numa experiência analítica, que não se reduz a uma tentativa de
ortopedia ou engessamento psíquico, o sujeito experimenta o que seria "O périplo pelo qual o personagem se educa para vida, enfrentando-se com a decepção, com a dor e com a perda das ilusões, mas também tomando conhecimento de suas possibilidades, de seus limites e de suas responsabilidades" (Mezan). Enfim, o divã na psicanálise propõe uma acolhida para aquele que se dispõe a esta viagem para o insólito e desconhecido de si mesmo. Mares calmos não serão garantidos, mas a parceria analista-analisando possibilita navegar por estes mares "nunca dantes navegados"...
*Artigo publicado no Jornal de Jundiaí em 07/04/13
**Psicóloga e psicanalista pelo TRIEP, membro do TRIEP.