A produção da
doença*
Por Vladimir Safatle**
A
partir do final de maio, estará disponível a quinta e última versão do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). É de esperar que, a
partir de agora, um importante debate a respeito da maneira com que as
distinções entre normal e patológico foram modificadas chegue à opinião
pública.
Utilizado de maneira cada vez mais extensiva como
padrão de reflexão sobre a natureza do sofrimento psíquico, o DSM está longe de
ter o fundamento científico e isento que ele gostaria de nos fazer acreditar.
Influências de toda ordem entram em cena. Afinal, cada novo transtorno é
promessa de novos investimentos bilionários da indústria farmacêutica, assim
como garantia do aparecimento certo de verdadeiras epidemias visíveis do dia
para a noite graças à divulgação maciça pela imprensa mundial e suas matérias
de saúde.
Talvez
isso explique ao menos um pouco essa verdadeira tendência de
"patologização da vida cotidiana" levada a cabo pelo DSM-5, que
elevou o número de patologias mentais a 450 categorias diagnósticas. Elas eram
265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2 (de 1968).
De
fato, com modificações como as que diminui o luto patológico de dois meses para
15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de
desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o
transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por
conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório
psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por
trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há
a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma
patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser
extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do
especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a
internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em
laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar
com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias.
Há
de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social
destas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Pois uma
coisa é certa: há muito o que questionar na eficácia de tais sobrediagnósticos.
Basta lembrar como houve, de 2000 a 2009, um aumento de 60% no consumo de
antidepressivos nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico). Nada indica que a taxa de depressão tenha
diminuído.
*artigo publicado na Folha de São Paulo,
15/5/2013.
**Vladimir Safatle é professor
livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo).