O luto e a luta*
Leila
Cristina dos Santos Veratti **
As duas palavras parecem não ter relação nenhuma,
para além da composição em quatro letras e uma certa similaridade sonora...
Luto, vem do latim luctus, que designa "dor, pesar, aflição, lamentar,
sofrer". Luta, também tem sua origem no latim, lucta, e significa
"luta, pugna, esforço". Hoje em dia, a forma como expressamos o luto
tem se apresentado bem diferente do modo como era feito décadas atrás.
Os rituais são um tanto distintos, quando os há. Mas os sentimentos e sensações
que envolvem e, muitas vezes, dominam aquele que perdeu uma pessoa muito amada
e querida, parecem não pertencer a essa série de rituais que se modificou com a
passagem do tempo: a tristeza, a revolta, a incompreensão acerca do acontecido,
as perguntas que se apresentam... tudo isso não se modificou. Repete-se na
incansável roda do tempo.
Em seu texto Luto e Melancolia, Freud diz que "o luto é a reação à perda
de uma pessoa amada." E que essa reação é superada com o tempo. Ao se
apresentar uma grande perda, o sujeito começa seu processo de luto. E cada
pessoa o representa a seu modo, procurando uma forma de expressar sua dor, seu
pesar, sua aflição, seu lamento. Nessa expressão bastante peculiar a cada um, o
processo de luto se transforma também em luta.
É preciso que toda uma série de investimentos em lembranças, em situações
vividas com aquele que não está mais presente, possam se apresentar ao
psiquismo do indivíduo para que, abastecido destas memórias, ele possa, aos
poucos, se desligar de tamanho pesar e sofrimento e transformar sua dor em
outra coisa: saudade, lembrança, herança emocional, uma marca que diga respeito
somente à sua relação com o ente querido, mas agora perdido.
Tudo isso requer um trabalho psíquico, um "esforço", uma
"luta", para que haja elaboração. A perda marca em nós uma falta.
Muitas vezes, acreditamos que, com esta falta, nos perdemos naquele que se foi.
Por um período, podemos acreditar que de nós também não restou muita coisa. Mas
se passarmos por esta luta e este luto, de uma maneira a termos internalizadas
nossas imagens, nossas vivências e experiências com aquele que partiu, podemos
verificar o quanto dele é que ficou em nós.
"A imagem preservada pelo amor, substitui o corpo que fomos obrigados a
nunca mais ver." (Diana Corso, psicanalista). Nunca mais! A marca
indelével da falta. Falta para a qual cada civilização, cada sociedade, cada
indivíduo, procura uma forma para lidar com ela. Talvez para não sucumbir à
perda...
"A angústia e a lembrança do mais ou menos de toda separação. A angústia
provém da espera do retorno e não da perda. Assim o luto pela morte realmente
advinda, é diferente (...) da angústia de separação. "Até já" é
justamente o que a morte proíbe e a religião e o amor autorizam. E a gente se
desgasta em imaginar o inimaginável de um "nunca mais", imagem
impossível de um retorno imaginado, diferido ao absurdo. "Até já"...
aí tudo recomeça...(...) A separação é esta dor que é a vida, que se imagina,
se representa e se sonha." (Radmila Zygouris).
*Artigo publicado no Jornal de Jundiaí
de 04/05/14 – Caderno Estilo
**Psicanalista
pelo TRIEP e membro do TRIEP - Trabalhos de Investigação e Estudos em Psicanálise.
5 comentários:
O artigo me parece bastante oportuno em tempos de excesso de todo tipo,espetaculo hiperativo que finge,simula todos os ganhos e gozos.Nada perdido,vida unilateral que te põe pela mão das circunstancias ,de frente com a grande interdição: a morte. Morte do amor,do sucesso, do corpo vigoroso,do lugar de estudante eterno, filho prodigo, do herói ou seu anti e tantos outros lugares que se dermos sorte um dia acabam.
Achei interessante o comentário da Denise M Molino! Amplia o foco do artigo porque também coloca em questão todos os tipos de perdas que não são vividas como tal e são negadas nas suas finitudes.
Para além disto, é sensível a perspectiva que o artigo coloca e que me parece pouco pensada: a diferença crucial do adeus do até breve.
Parabéns Leila!
Excelente artigo!
Excelente exemplo de como a perda, a dor, pode se transformar em produção, luta, crescimento. A questão não é negar a falta, senão pegar ela e partindo disso conseguir continuar.
Denise, agradeço suas colocações e comentários, por viabilizar e fomentar uma discussão muitas vezes esquecida: a do quanto nos excessos também verificamos o vazio, a finitude e o desamparo, próprios da condição humana. A cada um isso se apresenta sob uma face de horror, sendo a morte a inevitável marca, mas da qual não temos registro no inconsciente. Talvez por isso tenhamos tanta dificuldade em aceitá-la e em representá-la... Abraço e obrigada pela leitura!
Daisy, querida! Essa diferença entre um "adeus" e um "até breve" refere-se mesmo a uma diferença sensível! E o quanto um luto pode se transformar, passando de uma perda a uma herança subjetiva, depende do quanto sensível estamos a esta perda e a esta apropriação...
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