segunda-feira, 5 de maio de 2014

O luto e a luta*

Leila  Cristina dos Santos Veratti **

As duas palavras parecem não ter relação nenhuma, para além da composição em quatro letras e uma certa similaridade sonora... Luto, vem do latim luctus, que designa "dor, pesar, aflição, lamentar, sofrer". Luta, também tem sua origem no latim, lucta, e significa "luta, pugna, esforço". Hoje em dia, a forma como expressamos o luto tem se apresentado bem diferente do modo como era feito décadas atrás. 

Os rituais são um tanto distintos, quando os há. Mas os sentimentos e sensações que envolvem e, muitas vezes, dominam aquele que perdeu uma pessoa muito amada e querida, parecem não pertencer a essa série de rituais que se modificou com a passagem do tempo: a tristeza, a revolta, a incompreensão acerca do acontecido, as perguntas que se apresentam... tudo isso não se modificou. Repete-se na incansável roda do tempo.

Em seu texto Luto e Melancolia, Freud diz que "o luto é a reação à perda de uma pessoa amada." E que essa reação é superada com o tempo. Ao se apresentar uma grande perda, o sujeito começa seu processo de luto. E cada pessoa o representa a seu modo, procurando uma forma de expressar sua dor, seu pesar, sua aflição, seu lamento. Nessa expressão bastante peculiar a cada um, o processo de luto se transforma também em luta.

É preciso que toda uma série de investimentos em lembranças, em situações vividas com aquele que não está mais presente, possam se apresentar ao psiquismo do indivíduo para que, abastecido destas memórias, ele possa, aos poucos, se desligar de tamanho pesar e sofrimento e transformar sua dor em outra coisa: saudade, lembrança, herança emocional, uma marca que diga respeito somente à sua relação com o ente querido, mas agora perdido.

Tudo isso requer um trabalho psíquico, um "esforço", uma "luta", para que haja elaboração. A perda marca em nós uma falta. Muitas vezes, acreditamos que, com esta falta, nos perdemos naquele que se foi. Por um período, podemos acreditar que de nós também não restou muita coisa. Mas se passarmos por esta luta e este luto, de uma maneira a termos internalizadas nossas imagens, nossas vivências e experiências com aquele que partiu, podemos verificar o quanto dele é que ficou em nós.

"A imagem preservada pelo amor, substitui o corpo que fomos obrigados a nunca mais ver." (Diana Corso, psicanalista). Nunca mais! A marca indelével da falta. Falta para a qual cada civilização, cada sociedade, cada indivíduo, procura uma forma para lidar com ela. Talvez para não sucumbir à perda... 

"A angústia e a lembrança do mais ou menos de toda separação. A angústia provém da espera do retorno e não da perda. Assim o luto pela morte realmente advinda, é diferente (...) da angústia de separação. "Até já" é justamente o que a morte proíbe e a religião e o amor autorizam. E a gente se desgasta em imaginar o inimaginável de um "nunca mais", imagem impossível de um retorno imaginado, diferido ao absurdo. "Até já"... aí tudo recomeça...(...) A separação é esta dor que é a vida, que se imagina, se representa e se sonha." (Radmila Zygouris).


*Artigo publicado no Jornal de Jundiaí de 04/05/14 – Caderno Estilo
**Psicanalista pelo TRIEP e membro do TRIEP - Trabalhos de Investigação e Estudos em Psicanálise.


5 comentários:

Unknown disse...

O artigo me parece bastante oportuno em tempos de excesso de todo tipo,espetaculo hiperativo que finge,simula todos os ganhos e gozos.Nada perdido,vida unilateral que te põe pela mão das circunstancias ,de frente com a grande interdição: a morte. Morte do amor,do sucesso, do corpo vigoroso,do lugar de estudante eterno, filho prodigo, do herói ou seu anti e tantos outros lugares que se dermos sorte um dia acabam.

Daisy Lino disse...

Achei interessante o comentário da Denise M Molino! Amplia o foco do artigo porque também coloca em questão todos os tipos de perdas que não são vividas como tal e são negadas nas suas finitudes.
Para além disto, é sensível a perspectiva que o artigo coloca e que me parece pouco pensada: a diferença crucial do adeus do até breve.
Parabéns Leila!

Maria Celia Gabarrot disse...

Excelente artigo!
Excelente exemplo de como a perda, a dor, pode se transformar em produção, luta, crescimento. A questão não é negar a falta, senão pegar ela e partindo disso conseguir continuar.

Leila Veratti disse...

Denise, agradeço suas colocações e comentários, por viabilizar e fomentar uma discussão muitas vezes esquecida: a do quanto nos excessos também verificamos o vazio, a finitude e o desamparo, próprios da condição humana. A cada um isso se apresenta sob uma face de horror, sendo a morte a inevitável marca, mas da qual não temos registro no inconsciente. Talvez por isso tenhamos tanta dificuldade em aceitá-la e em representá-la... Abraço e obrigada pela leitura!

Leila Veratti disse...

Daisy, querida! Essa diferença entre um "adeus" e um "até breve" refere-se mesmo a uma diferença sensível! E o quanto um luto pode se transformar, passando de uma perda a uma herança subjetiva, depende do quanto sensível estamos a esta perda e a esta apropriação...